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Histórias de Belém - Domingo de Carnaval



Começo hoje aqui, se os meus prezados eventuais leitores mo permitirem, uma série de pequenas histórias sobre o Clube do nosso coração. Como este é o primeiro texto de uma sequência regular, cuja longevidade dependerá mais dos leitores do que do autor, permito-me escrever algumas linhas “explicativas”, à laia de introdução.
Não tenho “veia” de historiador, nem pretendo competir com outros belenenses que, com mais capacidade que eu para enquadrar e relatar acontecimentos, têm vindo a produzir (e espero que o continuem a fazer) belas peças sobre o passado glorioso do Clube de Futebol “Os Belenenses”. Pretendo apenas dar uma modesta contribuição para tentarmos perceber este universo de ansiedade, alegria, raiva, desolação e esperança em que estamos envolvidos ao carregar a “Cruz de Cristo” ao peito, explicando ao mesmo tempo, como se tal fosse necessário, as razões do meu “belenensismo”, como se alguma vez as paixões pudessem ou tivessem de ser explicadas.
Quem me conhece pessoalmente, provavelmente já me ouvir dizer que “quando nasci já era do Belenenses”. Isto não é uma mera expressão enfática ou uma figura de retórica; é absolutamente verdade. Tive a sorte de nascer no mais belo bairro de Lisboa, em Belém, e aí viver toada a minha infância e boa parte da minha adolescência. É claro que a vivência no bairro foi traçando marcas indeléveis na minha personalidade e começando a construir a minha cultura: a família, os amigos, a escola, as ruas, os jardins, o pôr-do-sol mais doce do mundo (só em Belém é que há), o rio, os pastéis, os monumentos – os Jerónimos, a Torre de Belém e o Belenenses! No entanto, houve factos ocorridos antes da minha chegada ao lado de cá da vida, que me foram dados a conhecer (ou melhor, ensinados) pelos meus pais, avós e outros familiares e amigos, que também contribuíram para pintar o meu coração de azul. Por isso, eu quando nasci já era do Belenenses.
Esta primeira história que vos trago relata precisamente um facto ocorrido antes de eu nascer e foi-me contada pela minha mãe, aliás sua protagonista. A minha mãe casou em 1949 e quando “armou” a confusão que vos vou contar ainda era solteira, pelo que podemos situar a ocorrência, com alguma exactidão, em finais da década de 40. Nessa altura, o meu pai, que tinha chegado a Lisboa há pouco tempo, vivia na Calçada do Galvão em casa de uma prima, a D. Arminda, que era casada com um conhecido comerciante de Belém, o Sr. Abel José (de quem eu herdei o nome porque a sua filha veio a ser minha madrinha de baptismo). O Abel José foi um dos primeiros sócios do Belenenses, figura de prestígio no seio do clube e amigo pessoal de um dos dirigentes de então, o Dr. Virgílio Paula (que foi o primeiro presidente da AG do CFB), conhecido médico de Belém, com consultório na Calada da Ajuda. Os meus avós maternos eram visitas da casa da Calçada do Galvão, onde os meus pais se conheceram, e terá portanto estado na origem do autor destas linhas.
No fulgor da sua juventude, a minha mãe era uma rapariga muito divertida e adorava pregar partidas. Num domingo de Carnaval, em finais dos anos 40’s, em que se jogava um Belenenses-Sporting, resolveu, em colaboração com uma amiga do bairro de Belém, telefonar para o estádio das Salésias, durante o jogo, dizendo que estava a ligar de casa do Abel José e pedindo para avisarem o Dr. Virgílio Paula que o seu amigo tinha acabado de sofrer um ataque cardíaco e se encontrava muito mal. Numa época em que se usufruía da vantagem de não haver telemóveis (ainda bem, porque de outro modo esta história teria morrido no segredo das “redes”), segundo testemunhas fidedignas, pela instalação sonora do estádio das Salésias, em pleno jogo, foi pedido ao Dr. Virgílio Paula que se deslocasse ao gabinete da direcção para tratar de assunto da máxima urgência, sendo aí informado do “ocorrido”. Aflito com a notícia, sem querer saber do resultado do jogo, o saudoso belenense sai a correr das Salésias, mete-se no carro e dirige-se a casa do seu amigo para lhe prestar os primeiros cuidados clínicos. Quando a mulher (a minha querida madrinha velha”) lhe abre a porta, estabelece-se um diálogo que terá sido qualquer coisa deste género:
— Então o Abel?
— O Abel, Sr. Dr.? Não sei.
— Não sabe? Então ainda há pouco me telefonaram daqui a dizer que ele se tinha sentido mal.
— Mas aconteceu alguma coisa ao Abel, Sr. Dr.?
— Isso pergunto eu D. Arminda. Mas afinal onde é que está o Abel?
— O Abel, Sr. Dr., o Abel está nas Salésias a ver o jogo.




Tudo isto se passou há muitos anos, e algumas das “vítimas” desta encenação nunca vieram a saber quem foi o autor da “graça”. É um segredo de família, que agora partilho convosco. Não creio tratar-se de uma traição. É antes um gesto de ternura, para com o Clube e todos aqueles – belenenses de então e de sempre – que estiveram envolvidos nesta brincadeira, de mau gosto, devo reconhecer. Permitam-me que envie um beijo àqueles que ainda podem confirmar esta história e derrame uma lágrima de eterna saudade por aqueles que já partiram.
Saudações azuis.



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