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Histórias de Belém II- Coitado até é bom rapaz...



Não sei se hoje em dia se é adepto de um clube pelas mesmas razões (se é que a razão tem alguma coisa a ver com isto) por que eu e muitos da minha geração somos adeptos do Belenenses. Acho que não, qualquer que seja o clube pelo qual se dá conta começarmos a vibrar, e isso aplica-se também àqueles que começam agora a sentir o peso da Cruz de Cristo.

O apego a um clube, como qualquer outra das muitas paixões que vamos saboreando pela vida fora (umas mais doces, outras nem tanto), é fortemente determinado pela idiossincrasia do tempo e pela dimensão do espaço em que vivemos.



Na época em que vivi a minha infância em Belém, o bairro era uma pequena aldeia provinciana (no melhor sentido, devo reconhecê-lo, uma vez que nos permitiu crescer num ambiente urbano sem deixarmos de aprender o valor das raízes rurais que muitos de nós tínhamos) dentro de uma Lisboa centralizadora, capital de um país fechado ao resto do mundo. Tudo se passava no bairro: a escola, as brincadeiras, o contacto com familiares e amigos. Ia-se uma vez por mês à baixa fazer compras, de vez em quando lá se fazia uma pequena viagem (sobretudo nas férias)... e não éramos menos felizes por isso. Pudera, nós, miúdos de Belém, vivíamos no bairro mais lindo do mundo! Aliás, Belém, era o centro do mundo, ou melhor, era praticamente o mundo que conhecíamos.



De facto, na década de 50, o contacto com o mundo exterior estava fortemente confinado ao espaço físico em que vivíamos. Não havia televisão e a (restante) comunicação social não tinha o peso e expressão que tem hoje. Para uma criança actual é inconcebível viver sem estes “avanços da civilização”, mas os miúdos da minha idade conseguiram “sobreviver” sem eles. Por isso disse atrás que as razões que levam alguém a ser deste ou daquele clube já não são as mesmas que foram válidas para mim. Hoje em dia não há nenhuma criança que não tenha ouvido falar de todos os clubes do país (e do resto do mundo...) e não tenha estado sujeita a um sem número de “pressões” que condicionaram a sua decisão clubística.. Mas “no meu tempo” não era assim.

Tenho a plena consciência de que, quando era pequeno, tudo aquilo de que me era dado aperceber ou resultava da minha observação directa (terá estado aqui a génese da minha “veia” experimentalista?) ou me era transmitido por aqueles que me eram próximos. Isto aplicava-se a tudo aquilo que se ia aprendendo, a todas as áreas de actividade, ao desporto também.

Não admira pois que em miúdo tivesse apenas ouvido falar num clube: o Belenenses! O Belenenses era não só o maior clube de Portugal, como praticamente o único... Só se falava do Belenenses quando o tema era desporto. Nessa altura, o futebol já era rei, mas o clube era também o maior noutras modalidades, como o ciclismo, a natação, sei lá. Na rua, lá em casa, na escola, no círculo de familiares, amigos e vizinhos, o Belenenses era a expressão máxima quando o tema da conversa era desporto. Só se falava em outros clubes (o que era raro) para dizer mal e apontá-los como “perigosos inimigos” do nosso.

O clube estava de tal modo envolvido na nossa vida do dia a dia que cada vitória, fosse em que modalidade fosse, até ao berlinde, era considerada como um sucesso pessoal e familiar. Conheciam-se os jogadores, as suas famílias, sabia-se onde moravam (desde que fosse em Belém, claro) e até se comentavam, na “inofensiva” má-língua da época, as aventuras amorosas de alguns deles. Para a miudagem, obviamente, o clube também não passava ao lado do seu dia a dia. Lembro-me que quando jogava à bola na rua, se constituíam sempre duas equipas: uma era “O Belenenses”, para a qual eram escolhidos aqueles que tinham jeito para jogar à bola, a outra era “os outros”. Como eu era (e ainda sou, cada vez pior) um desajeitado para o pontapé-na-bola, fazia sempre parte da equipa dos “outros”. No final do jogo era fatal: tinha levado uma cabazada. Mas não ficava triste; afinal o vencedor tinha sido “O Belenenses”!

“Ser do Belenenses”, naquela época e em Belém, fazia parte da cultura das gentes do bairro, de tal forma que não ser do Belenenses era considerado um verdadeiro estigma social. Numa terra em que todos eram adeptos do clube, os poucos que não manifestavam essa simpatia eram apontados a dedo e mesmo alvo de algumas conversas de escárnio e maldizer. No bairro da minha avó (aquele bairro de vivendinhas em Belém) havia uma única família que não era do Belenenses; quando um membro dessa família passava na rua, havia sempre alguém que tapava a boca com a mão e sussurrava ao ouvido de quem estava próximo, num tom de profunda reprovação:
─ Olha, aquele é do Benfica!
Mas a melhor ilustração desse “espírito” de época, pode ser dada pela pequena “graça”, ou melhor, breve comentário, com que vou terminar esta história de hoje.

O “acontecimento” tem algo a ver com o que contei na primeira história desta série. O Sr. Abel José, conhecido comerciante de Belém e sócio do Belenenses, era proprietário de uma mercearia situada entre o jardim Colonial e os Pastéis. Lá na loja, toda a gente era do Belenenses: o patrão, a família, os empregados, a esmagadora maioria dos clientes. Um dia, foi para lá trabalhar um rapaz que era simpatizante do Sporting! Foi o suficiente para que, poucos dias depois, eu tivesse ouvido em minha casa o seguinte comentário:
─ Agora, na mercearia do Abel, têm um empregado novo. Coitado, é do Sporting! É uma pena não ser do Belenenses, porque ele até é bom rapaz...

Enfim, histórias de um tempo em que o mundo era mais pequeno. Mas, se calhar, não menos rico em emoções e sentimentos.

Saudações azuis.



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