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Histórias de Belém III - Caldo Verde



O título desta história não podia ser mais infeliz, atendendo à ocasião em que ela está a ser escrita; a cor verde não é a nossa e não nos traz, nem nunca nos trouxe, qualquer boa recordação. No entanto, como vão ver, o título não podia ser outro e, no contexto em que está inserido, constitui, pelo menos para mim, uma doce recordação.

Já aqui falei das muitas “razões” que traçaram o meu destino belenense, mas não em todas, se é que elas são quantificáveis. Uma das que faltam, e não de menor importância, é de natureza desportiva. Pois é, também pratiquei desporto no Belenenses! Quando tinha quatro anos, o meu padrinho, outro dos grandes responsáveis pelo meu “belenensismo”, na altura dirigente da Secção de Natação do clube, inscreveu-me na escola de natação do Belenenses. E lá fui eu para o “caldo verde”.





O caldo verde era (e é) um tanque que havia no topo norte do Jardim Colonial, na Calçada do Galvão, em frente do edifício que alberga hoje o museu. Era aí que funcionava a “escola prática” de natação do Belenenses, muito antes do progresso (?) nos ter brindado com aquela que é, actualmente, uma das melhores piscinas olímpicas do país. O tanque estava dividido em duas partes, uma “com pé” e outra “sem pé”, pela ponte que dava acesso ao museu e a sua superfície interna, devido aos métodos precários de tratamento de águas da época, estava completamente coberta por algas e fungos que davam à água a coloração de onde deriva o nome pelo qual a improvisada piscina era, e ainda hoje é, conhecida. Para além da cor verde, o referido manto vegetal trazia outros inconvenientes, como se irá comprovar por aquilo que poderemos considerar como o tema central da história de hoje.

Foi pois no caldo verde do Belenenses que aprendi a nadar. A aprendizagem compreendia várias fases, desde o início agarrado a um cinto pendurado na ponte, passando por exercícios de respiração e primeiras braçadas na parte com pé até à passagem triunfal para a metade do tanque sem pé, prova irrefutável que nos dava o estatuto de nadador. Muitas são as recordações que guardo desse tempo. Para além da alegria de aprender e praticar desporto, ficou a memória de algumas amizades com outros praticantes e de um ou outro episódio pitoresco, como o de um dia em que no balneário o estrado de madeira que revestia o chão se cansou do estado de podridão em que se encontrava, cedeu e eu enfiei uma perna por um buraco abaixo, o que me custou duas semanas sem treinos para recuperar da lesão. Mas o episódio mais marcante, e no pior sentido, foi aquele que relatarei a seguir.

Um belo dia, por volta dos meus dez anos, já fazia eu umas quantas vezes sem parar a “piscina sem pé”, no fim do treino, o meu instrutor chegou ao pé de mim e disse que eu estava seleccionado para ir a provas, representar o clube no campeonato de infantis que se ia realizar daí a uns tempos na piscina do Algés. Não será difícil imaginar o estado em que ficou um miúdo de dez anos perante tal perspectiva. Comecei logo a ver-me a perfilar-me no pedestal da minha pista de cruz de Cristo ao peito, a “dar o litro” nos 100 m bruços e a fazer subir a bandeira do Belenenses num qualquer mastro, de preferência mais alto do que os mastros que ostentavam as bandeiras dos outros clubes. Cheguei a casa eufórico e preparei-me psicologicamente para umas semanas de treinos sem tréguas.

Não cheguei a ir às tais provas. Poucos dias depois de me terem dito que estava seleccionado, adoeci. Lembro-me que tinha muita febre e vomitava continuamente. Não me lembro de mais nada. Soube depois, no hospital, que fui internado em estado de coma, tendo-me sido diagnosticada uma meningite. A meningite é a tal doença da qual se diz que “ou se morre ou se fica maluco”. Não morri, pelo que será fácil concluir o estado em que fiquei. Se calhar é por isso que continuo a ser do Belenenses… Após mais de um mês de internamento, regressei a casa, clinicamente curado, mas com instruções rigorosas de fazer um longo período de convalescença. Soube-se então em Belém que, na altura em que estive no hospital, mais dois miúdos que andavam comigo na natação tinham também sido internados com casos de meningite, um dos quais, infelizmente, veio a falecer. As precárias condições de higiene do tanque, em particular o célebre revestimento verde, foram consideradas as responsáveis pelo surto epidémico e a piscina foi encerrada para limpeza e obras, reabrindo mais tarde. Mas a decisão que os meus pais tomaram foi mais drástica: acabou-se a natação. Não adiantaram os meus protestos; a decisão era inabalável e levou consigo o meu sonho de nadar com a cruz de Cristo ao peito. Nadar, só na praia. Nunca mais voltei ao caldo verde!

Quando comecei a ser responsável pelas minhas decisões voltei a nadar em piscina. Em vários sítios, sem revestimento verde. Hoje faço-o na nossa magnífica piscina olímpica, que continua a ser um caldo porque a água é aquecida e onde o verde foi substituído pelo belo azul dos azulejos limpos. Nadar continua a ser um prazer, mas saio sempre da piscina com um nó na garganta. É claro que fazer natação é saudável, dispõe-me bem, dá para esticar os músculos e desenferrujar as dobradiças, …mas já não sonho em nadar de cruz de Cristo ao peito.

Saudações azuis




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