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Entrevista com Rui Jorge



Depois dos títulos no Porto e no Sporting, Rui Jorge terminou a carreira no Belenenses e assumiu o cargo de treinador de juniores. Nesta segunda parte da sua entrevista à Academia de Talentos, Rui Jorge fala-nos da sua passagem pelo Belenenses, o trajecto ao nível das selecções nacionais e a transição de jogador para treinador.

Como é que surgiu a hipótese de vir para o Belenenses?

Convém referir que antes da época terminar no Sporting, tinha falado com o Carlos Freitas, o Director Desportivo, e ele disse que me iria ser apresentada uma proposta. Mas nunca imaginei, e daí ter dito que fiquei algo surpreso, que fosse sair do Sporting. Estava de férias e fui contactado por um jornalista que me disse que o Sporting não ia renovar comigo. Como nunca colocaria nenhum entrave financeiro à minha continuidade no clube, fui apanhado completamente desprevenido quando me disseram que não entrava nas opções técnicas. Depois do choque inicial e como estava seguro da renovação, não tinha precavido o meu futuro, acabei por ficar seis meses a treinar sozinho, sem clube, pois sabia que ainda não tinha chegado a hora de acabar. Quando recebi um telefonema do Couceiro a falar desta possibilidade e aceitei com muito gosto.

Depois de uma carreira repartida entre Porto e Sporting, chega a um clube popular mas de menores dimensões. Quais foram as principais diferenças que notou?

Os clubes que lutam sistematicamente para o título, como eram os casos do Porto e do Sporting, têm naturalmente objectivos diferentes dos restantes. E por se estar habituado a estar num clube que ganha muitas mais vezes do que aquelas que perde, uma coisa que se estranha, foi isso: não ganhar tantas vezes quanto estava habituado. A culpa não é do clube em si, mas também não é propriamente de ninguém. O plantel tem menos qualidade, há menos capacidade financeira mas a realidade é essa. Foi um sentimento que não me agradou. Mas é um clube, como disseste, popular, todos gostam do Belenenses, mas agora vamos tentar fazer com que o Belenenses ganhe mais vezes, que seja ainda maior.





Sendo um dos mais experientes no plantel, assumiu algum tipo de papel de relevo no balneário?

Não, não. As pessoas valem por aquilo que demonstram e os colegas habituam-se a seguir aqueles que eles acham que estão correctos. Portanto, não há aquilo de tentar mostrar, de tentar ser líder, tentar ser mais experiente. Se as pessoas concordam com aquilo que tentas fazer, se não te impores, é preferível. É natural, por ter jogado onde joguei, que houvessem alguns jogadores, inclusive alguns antigos companheiros meus, que já me conheciam minimamente, sabiam que eu vinha para ajudar e que não me achava superior aos outros. Não pode haver esse tipo de sentimento numa equipa, nunca. E portanto, fui mais um dentro do grupo.

Como descreve a sua estadia no Belém?

Não foi o que eu esperava. Esperava algo diferente. Quando vim para aqui, como jogador, esperava passar aqui muitos anos, a exemplo do que tinha acontecido nos meus clubes anteriores - o que vai em conta com a minha forma de ser - apesar de ter uma idade diferente [32 anos]. Mas sentia-me fisicamente apto para continuar a jogar. Infelizmente, em termos desportivos, as coisas não correram bem para o clube e depois acabámos por tomar essa decisão. Recordo-me que na altura pensávamos que o Belenenses ia para Segunda Divisão e cheguei a falar com o Presidente, tinha mais um ano de contrato e abdiquei dele e surgiu o convite para as camadas jovens a aceitei.

O desempenho do Belenenses

Após dois anos com classificações mais modestas, este ano o Belenenses está na luta pelos primeiros lugares...

Desculpa interromper, mas só queria salientar uma coisa. No outro dia vocês escreveram que haviam algumas equipas no campeonato de juniores que se destacavam, para além do Benfica e do Sporting. [entrevista de Filipe Paiva] Nós nesse ano (2006/07), ficávamos empatados com o Estrela, num ano anormal para o Estrela em termos pontuais, no meu primeiro ano. No segundo ficávamos empatados com o Oeiras. Mas não me parece que um ponto de diferença, para trás ou para a frente, seja motivo de catalogação de uma época. Há uma coisa que eu sei: que de ano para ano, o Belenenses tem vindo a somar mais pontos do que no ano anterior, e isso para mim é importante. E para eles também, conseguir conquistar mais pontos do que no ano anterior. Agora, se esses pontos dão ou não, é algo que já não podemos dominar. Temos de ter essa capacidade de ir melhorando. Ainda não estamos ao nível do Benfica, do Sporting em todos os aspectos mas vamos tentar caminhar para lá.

(NDR: O Belenenses terminou a 1ª Fase 06/07 com 58 pontos (59-28 em golos), 07/08 com 60 pontos (77-32 em golos), e presentemente tem 58 pontos (69-26 em golos) quando ainda restam disputar 4 jornadas).

Algumas pessoas dizem que é o resultado do trabalho do Rui Jorge outras dizem que se deve à qualidade do plantel. Qual é a sua opinião?

É uma mistura de tudo, penso eu. Também, naturalmente, espero evoluir todos os anos como treinador, e espero estar melhor hoje do que no meu primeiro ano como treinador. É um facto de que as equipas, que as fornadas, como se diz nas camadas jovens, têm um papel muito importante nos anos dos clubes. Portanto, é o conjunto de todos esses factores, e a verdade é que nesta altura o Belenenses conseguiu um grupo de miúdos que estão com ambição, que estão com espírito e que estão a conseguir bons resultados. Agora, isso não é tudo para o Belenenses se sentir 100% satisfeito. Ainda temos muito caminho, muito caminho mesmo, a percorrer. Porém, se não tivéssemos marcado no último minuto contra o Sporting, se não tivéssemos ganho ao Massamá, e se estivéssemos com menos quatro pontos, não me parece muito lógico ter um discurso diferente do que aquele que estou a ter nesta altura, mesmo estando a 7 pontos do líder. A formação, para mim, é muito mais do que isso. Para mim é fundamental o espírito de vitória, o espírito de conquista. Nunca me vão ver dizer que não é importante ganhar, mas há coisas igualmente importantes na formação.

A maior parte das equipas de formação joga em 4-3-3 mas o Belenenses joga em 4-4-2 losango. Qual a razão?

A partir de determinada altura começámos, efectivamente, a jogar assim, devido às características dos jogadores. A formação é algo complicada, no sentido em que é preciso tomar algumas opções. Este ano, o Belenenses tem 4 pontas de lança muito fortes e equilibrados e no sistema de 4-3-3, eventualmente, estaríamos a dar competição a um e três ficariam sistematicamente de fora. Num sistema de 4-4-2, podemos utilizar com muito mais frequência dois pontas de lança e os outros também poderão entrar. Ou seja, nessas duas posições, para as quais temos 4 jogadores com bastante qualidade, e se há qualidade há que lhes dar espaço para que se desenvolvam, optamos por jogar nesse sistema com mais frequência. Claro que o resto da equipa também se consegue equilibrar nesse sistema e essa é mais uma razão para o usarmos. Ficamos algo penalizados em termos de extremos, mas como usamos extremos de primeiro ano, que têm também outro espaço dentro do sistema 4-4-2, temos como dar a volta à situação. Mas o principal motivo foi mesmo dar competição aos 4 pontas de lança que temos.





Não é necessariamente o seu sistema base?

Não.

É que normalmente se diz que o sistema 4-3-3 é o que prepara melhor os jogadores para o futebol sénior, pois dá mais maleabilidade e cultura em termos tácticos aos jovens, com extremos, ponta de lança, médio centro... algo que talvez vá ao encontro do facto de Portugal formar com regularidade muitos alas e medios centro mas poucos avançados centro...

Repara numa coisa. Como se sabe, Portugal forma mais extremos que pontas-de-lança e isso acontece, se calhar, porque se joga muitas vezes em 4-3-3. É uma situação raríssima ter 4 pontas de lança da qualidade que eu tenho aqui no Belenenses. Nos últimos dois anos, tive bons pontas de lança mas não com estas características. Achamos, porque até é uma lacuna, apesar de não estar muito de acordo com isso, que se tivermos oportunidade de formar pontas de lança para o futebol português não vamos desperdiçar essa oportunidade. Porém, não concordo quando dizes que é o sistema que melhor prepara os jogadores para o futebol profissional. Não há, para mim, nenhum sistema. Para mim, a base da formação é fazer com que os jogadores percebam o jogo. Se eles conseguirem perceber o jogo, conseguem jogar no 4-4-2, no 4-3-3, no 5-4-1, conseguem jogar em todos os sistemas. Outra coisa é automatizá-los para essas posições, para essas funções, para aquilo que nós queremos. Agora, quanto maior for a liberdade, maior a informação que se conseguir dar aos jogadores, de maneira a que eles consigam perceber o jogo, acho que se tornam jogadores mais capazes, apesar de também concordar com a especificidade da posição.

Pegando no caso do Ajax, em que se joga no mesmo sistema desde a formação até aos seniores, em que os treinadores de seniores do Ajax já sabem qual é o sistema que vão adoptar porque é sempre o mesmo, faz sentido formar-se jogadores que depois vão ser inseridos naquele sistema. Em Portugal não há essa cultura nos clubes, pois tanto há treinadores que agora jogam em 4-4-2 como amanhã aparecem outros que jogam em 4-3-3. Portanto, para mim, não faz sentido durante a formação teres um sistema, e dando um exemplo concreto, se houver um ponta de lança que joga sistematicamente, desde o primeiro dia de formação até ao último, em 4-3-3 e depois a nível sénior aparece um treinador que joga em 4-4-2. Em nível de movimentação, se não lhe tiverem dado outra informação até então, ele vai-se sentir muito perdido. É evidente que é uma situação dúbia mas é o que eu acho.

Actualmente, apenas passam duas equipas para a fase final. As novas alterações no campeonato nacional alargam o número de equipas qualificadas. Que pensa destas alterações?

Já tinha falado com o Professor Agostinho Oliveira sobre essa situação, há muito tempo. Por exemplo, este ano, em termos de pontuação, nesta altura, é um pouco anormal, pois o Sporting e o Benfica estão relativamente próximos de nós. Agora, mesmo não falando pelo Belenenses, falando por alguns clubes com algumas ambições em termos pontuais, como o Estrela da Amadora, como o Massamá, o Atlético, qualquer clube que ambicione competitividade e competição de bom nível para os seus jogadores, deve estar de acordo com isto. Não é salutar, a meio do campeonato, não haver um objectivo pelo qual lutar, em termos de tabela. Mesmo para os jogadores, não é salutar, mesmo para o espírito que queremos que eles tenham, esse espírito de competição. Não é fácil criar objectivos para uma equipa que já não vai descer e que é praticamente impossível chegar aos dois primeiros lugares. E há muitas equipas nessa situação. Portanto, há que dar a competitividade e a competição de um campeonato. Normalmente, o primeiro e o segundo lugar são lugares reservados, digamos assim. Pode acontecer, e já aconteceu e vai continuar a acontecer, que sejam ocupados por outras equipas que não o Benfica e o Sporting, aqui na Zona Sul. Isso não invalida que não queiramos lá chegar e vamo-nos esforçar para isso e tudo o faremos para o conseguir. Agora, se não conseguirmos, e não andarmos tão próximos desse objectivo, temos de ter outro pelo qual lutar. E um quarto lugar já permite a outras equipas, que não essas duas, entrar numa disputa por algo palpável e acho que nesse aspecto é benéfico.

Se as equipas conseguirem o apuramento para esse tal grupo de quatro, terão jogos de elevado grau de dificuldade. Vão jogar contra equipas competitivamente mais fortes, as que ficaram em primeiro, portanto é mais competição de qualidade para os seus atletas em vez de andarem uma série de jogos a passear. E o mesmo se passa com os que vão disputar a não descida de divisão. Vão estar num grupo, à partida, mais ou menos equilibrado, a tentarem lutar pelos seus objectivos. É evidente que aqueles clubes que andam muitas vezes naquele limite do desce/não desce se calhar, nesta primeira divisão, por ser um grupo mais reduzido, vão mostrar alguma renitência em relação a isso. Mas acho que vão acabar por perceber que, mesmo no escalão abaixo, há um nível competitivo para ganhar e para subir, para poderem estar com as equipas melhores, se calhar é mais vantajoso do que jogar no modelo actual.

Enquanto jogador, acompanhou diversos jogadores a dar os primeiros passos. Agora como treinador vê os seus jogadores serem chamados por Jaime Pacheco. Acha que os clubes portugueses deviam apostar mais nos jogadores nacionais?

Essa não é uma pergunta fácil. Vocês acompanham com alguma regularidade, estão mais por dentro do que é a formação, do que a maioria das pessoas. Regra geral, a formação vive com muitas dificuldades: campos de treino, bolas, transportes, horários de treino, coisas inimagináveis... Acham que é possível pedir, com estas dificuldades todas, ter um jogador que se peça ao Mister Jaime Pacheco para fazer a diferença? Não é. Hoje em dia, ou se é um talento ou se é um superdotado de outro mundo, para que isso aconteça, para chegar aos seniores e impor a sua qualidade. Terá também o cunho da formação, mas terá de ser mais a qualidade do jogador. E eu acho que não há jogadores capazes de passar, nesta altura da formação, ao plantel sénior e fazer a diferença a nível sénior Não o conseguem fazer.

Comparado com há 20 anos, quando o Rui Jorge apareceu? O que é que hoje em dia é mais complicado do que antigamente?

Não, estou a dizer que a diferença de júnior para sénior é uma diferença muito grande. Eu tive um ano de transição no Rio Ave e para mim foi um ano importantíssimo. Só que, como já referi, eu tive essa transição numa equipa forte, competitiva, com bons jogadores, muito acima daquilo a que estava habituado numa equipa de juniores. No entanto, a diferença, por muito boa que a nossa equipa de juniores fosse, era considerável. E se há alguma estabilidade a nível sénior para pegar num jogador e dar-lhe tempo a nível de crescimento, ainda conseguimos. Agora, pegar num jogador e metê-lo na equipa sénior e esperar que seja ele a solução para o clube, não dá. Muito dificilmente os jogadores nesta altura o conseguirão fazer. Terão aqui o seu crescimento, terão de passar para a parte sénior e vão ter de continuar o seu crescimento. E mesmo esse crescimento vai ter de ter uma subida acentuada, porque há uma diferença entre futebol de formação e futebol profissional, neste caso, de primeira divisão. É para isso que nós os formamos, para lhes dar capacidade de se aguentarem lá em cima e de continuarem o seu crescimento lá em cima.

E em relação aos clubes da segunda divisão?

É diferente. Estou a falar na realidade do Belenenses. Estou a falar de uma equipa de primeira divisão que tem necessidade em termos de qualidade. Não estou a dizer que os jogadores que estão aqui não têm qualidade, pois têm, mas é preciso algum cuidado pois muitas vezes fala-se que se pega nos juniores e... Mas não é assim, não é com essa facilidade toda. São muitos os exemplos disso, e o Jaime poderá falar melhor que eu, pois não vi muitos jogos, mas o Pelé quando jogou em Vila do Conde pelos seniores, aparentemente deu conta do recado. Mas uma coisa é dar conta do recado e outra coisa é ser uma afirmação sólida, ser um titular indiscutível, fazer a diferença na equipa, e é para isso que trabalhamos. Para eles poderem estar lá e estarem aptos para poderem continuar a crescer. Essa tem de ser a nossa finalidade de formação. Agora, se poderia ser mais fácil essa subida se houvessem regras diferentes em termos de obrigatoriedade de passagem ao escalão superior, se calhar, é possível. Mas muitas vezes, e voltando a dar um exemplo, penso que o facto do Sporting ter lançado muitos jovens ultimamente, tem a ver com a necessidade, por não ter dinheiro para contratações. A necessidade faz com que haja mais oportunidades. Se falarmos em Paulo Machado, em Vieirinha, o Bruno Gama, o Hélder Barbosa, por exemplo, são quatro jogadores com qualidade tremenda mas que devido à capacidade financeira do Porto e a possibilidade de ir buscar jogadores com outro estatuto, se calhar não tiveram a oportunidade que eventualmente o Porto da minha época daria.

O João Moutinho na selecção era, por exemplo, suplente de João Coimbra, que agora está no Gil Vicente...

Mas são casos. Se calhar o Porto, na minha época de passagem de júnior a sénior, não tinha a capacidade financeira para fazer os investimentos que faz hoje e para ir buscar vários jogadores ao preço que vai, e então tinha de recorrer à formação. E nessa altura tinha Fernando Couto, Vítor Baía, Jorge Couto, Secretário, Folha, Rui Filipe, Jaime Magalhães, João Pinto, todos da formação. Era uma relação causa e efeito. O que acontece é que, se for por necessidade se calhar as pessoas percebem, mas se for uma medida em termos de clube, podem já não perceber. Se houver dinheiro e não for investido, e se se pensar unicamente nos jovens, se calhar as pessoas, a sua paixão pelo futebol, não as deixam perceber tão bem. Mesmo quando não há esse dinheiro, as pessoas não conseguem perceber, e tem de se jogar com pessoas mais novas...

E a Liga Intercalar, não veio ajudar?

Para mim, como treinador dos jogadores juniores do Belenenses, muito. Estão a participar no meio de jogadores com outra experiência, com outra qualidade, com outro ritmo, e isso é muito importante para a evolução deles. E eu sinto crescimento neles também por causa desses jogos.

A estratégia do Belenenses até acaba por ser diferente, pois usa normalmente os jogadores menos utilizados do plantel principal e alguns juniores, ao contrário do Sporting e do Benfica, em que utilizam praticamente os juniores.

É verdade que eles não o fazem com a assiduidade com que o Belenenses faz. Mas, para mim, assim como está tem resultado muito bem. Não sei se estivessem praticamente dois campeonatos de juniores a decorrer, por assim dizer, se teria o mesmo efeito. Mas a verdade seria sempre benéfico para nós. Teríamos de repensar em termos de carga de esforço, teríamos de repensar o nosso planeamento em função disso, como de certeza que o Sporting e o Benfica tiveram de fazer, mas decerto que iríamos retirar coisas positivas e disso não tenho dúvidas.

Como é lidar com os pais dos jogadores para um treinador de formação?

Acho que é um nível de formação em que essa situação é menos problemática. Não tive qualquer problema com nenhum pai até este momento. Aliás, já tive algumas conversas com alguns pais, que me abordaram de uma forma perfeitamente correcta, e nunca nenhum me veio pedir explicações. Nunca aconteceu.

Fala-se muito que os clubes em Portugal deveriam coordenar os seus sistemas de jogo para que o da formação e o de sénior coincidam. Acha que o clube devia impor a um treinador que entra uma obrigatoriedade de jogar num sistema que esteja a ser usado na formação?

Vão haver sempre pontos a favor como pontos contra essa situação. Se se jogar num sistema que é para consumo interno, ou seja, partindo do princípio que nenhum jogador da tua formação sairia para um sistema diferente. Voltando ao caso do Ajax, se eu quiser um segundo ponta de lança, nunca iria ao Ajax buscá-lo pois eles não têm essa posição. Ao Ajax iria buscar um extremo, um ponta de lança... Assim como também não poderia ir lá buscar um número 10, pois eles não têm essa posição. Pode-se sim, ver em algum jogador qualidade, capacidade ou características para fazer essa posição, mas é um risco que se corre. Em Portugal não há estabilidade a nível de treinadores que permita dizer que durante toda a formação se jogará em 4-3-3 porque a nível sénior se vai obrigar ou exigir ao treinador que jogue em 4-3-3. Essa não é a realidade do futebol português e não há volta a dar porque a primeira desculpa que iria aparecer caso se verificasse essa situação, quer de treinadores quer de sócios, seria que nitidamente tem-se uma equipa para jogar noutro sistema táctico qualquer. Acho que os ganhos não seriam significativos em relação àquilo que se iria perder, à instabilidade que se iria criar.

Falando nos sócios, e transpondo até para um universo maior, o dos adeptos, é comum cada um achar que ele é que sabe qual a melhor forma de jogar, qual o melhor sistema, etc, os chamados treinadores de bancada. Isso incomoda-o de alguma forma?

Como já disse, como treinador, e até mesmo antes enquanto jogador, tenho de me habituar às críticas, quer sejam construtivas, quer não o sejam. Mas também convém lembrar que todos os adeptos são, em muitos dos casos, maus treinadores. Porque não sabem 80% das coisas que se passam...

Quem treinou bem, quem está afectado psicologicamente...

Entre outras coisas. Estamos habituados a comentar coisas das quais só temos 5% do conhecimento total. E é muito difícil fazer um comentário correcto com essa percentagem de informação. Existem muitos, muitos motivos, e o treinador sabe-os todos, além de que está na posse de todos os indicadores. E a partir daí, parece-me muito difícil comentar coisas alheias, em termos de futebol, coisas que eu não tenho conhecimento. Por exemplo, se me perguntarem qual seria o 11 que eu meteria a jogar no Benfica, tenho plena consciência que ao dar esse 11 posso estar a cometer grandes erros em termos de equipa, em termos de jogadores porque tenho muito pouca informação. Só tenho acesso ao que vejo na televisão, leio nos jornais, nada mais. Daí eu não conseguir conceber quem critica sem conhecimento de causa, apesar de saber que existe quem dá as suas opiniões de forma categórica e com a maior certeza, como se estivessem a dizer a maior verdade.

Em relação à aplicação das novas tecnologias no futebol, é apologista de que os árbitros deviam usar microfone ou outras inovações semelhantes?

Já dei essa ideia há muito tempo, desde os meus primeiros tempos no Sporting. Não custa nada a um árbitro ter um microfone com ele. Nada mesmo. E assim é mais fácil provar que são insultados por jogadores, por exemplo. E o jogador deve ser severamente castigado quando isso acontecer. Outra alteração é o tempo cronometrado no futebol que, mais tarde ou mais cedo, se não mudarmos de mentalidades, vai ter de existir. Outra coisa tão simples, que acho que até é utilizada no Brasil, é a marcação da barreira com um spray. São coisas tão simples de se implementarem no futebol que só não são implementadas porque as pessoas querem esta confusão, esta balbúrdia, este clima de poderem fazer impunemente de fazerem o que lhes apetece. É evidente que tudo o que seja para melhorar, mesmo que aconteça uma vez de 100 em 100 jogos, e que seja possível, claro que apoio, nem que seja para melhorar uma jogada.

Assumiu o papel de treinador há pouco tempo, mas certamente já deve ter planos. Ambiciona chegar a uma equipa sénior a curto prazo?

Não. Da mesma forma que eu, como jogador vivia a carreira intensamente, faço o mesmo como treinador. Vim um pouco à experiência e absorveu-me por completo. E absorve-me não só a carreira de treinador como a carreira de treinador no Belenenses a treinar jovens. Para mim, foi a mistura perfeita. Primeiro porque, como regra geral, tive uma relação duradoura com os clubes que representei e quero tê-la também com o Belenenses e uma das minhas mágoas como jogador, quando acabei, era que eu tinha pensado jogar mais anos no Belenenses tal como tinha feito anteriormente em outros clubes. Fico bastante preso às coisas e gosto de lutar por causas e por objectivos e, nesse momento, foi isso que senti. Tenho uma causa, um clube a defender e eu adoro trabalhar na formação. Acho que podemos ter um papel importantíssimo na formação de jogadores, na maneira deles abordarem a competição.

Eu quero uma maneira diferente daquilo que existe em Portugal. É bonito dizer-se que se gosta do campeonato inglês mas depois é difícil colocar esse espírito em prática. Há que formar jogadores, e isto não é um recado, apesar de eu ver muitos treinadores de camadas jovens a fazerem coisas péssimas em termos de mau comportamento para com o jogo. Não gosto nunca de pôr de parte o ganhar. Para mim é fundamental, exijo isso em termos de treino e em termos de jogo. Mas tem de ser com aquele espírito que eu acho que é preciso ter. Perguntem a qualquer um dos meus jogadores nestes três anos se eu lhes disse para passarem tempo, se alguma vez lhes disse para agredirem um adversário, se alguma vez lhes disse para simularem faltas... Isso para mim é fundamental, jogarem o jogo. Faltarem ao respeito ao adversário, faltar ao respeito ao árbitro, são coisas que não lhes admito. Não o admito, não quero isso.

Na formação, temos de saltar esse patamar. Somos nós que estamos a formar os jogadores para que amanhã tenhamos um futebol que possamos considerar diferente, mais de acordo com aquilo que todos nós achamos que seja melhor. E eu fui um jogador, fiz algumas dessas asneiras certamente, apesar de achar, sinceramente, que não era um jogador que fugia muito daquilo que eu considero fair-play, uma definição um pouco diferente da da maioria das pessoas. Um jogador deitar-se para o chão para queimar tempo e a outra equipa atirar a bola fora, isso não é fair-play, não é nada, é uma aberração. Se ele está a queimar tempo, por que não devo eu continuar a jogar? O fair-play é jogar limpo de uma forma leal, quando estão a jogar connosco de uma forma leal. Não posso compactuar com más atitudes perante o jogo. E acho que isso é um aspecto fundamental na formação, mudar alguma mentalidade instituída. Para mim, é inadmissível num jogo de 90 minutos haver apenas 30 minutos de jogo jogado, de haver sistematicamente jogadores no chão como aconteceu com o Marítimo recentemente. Não é isso que defendo para o futebol jovem e nunca me vão ver, nem com equipas superiores ou que estejam à nossa frente, se estivermos com um resultado vantajoso, não vão ver os meus jogadores a queimarem tempo, não os vão ver a chutarem a bola para fora, não vão ver isso. E isso é uma mensagem importante a passar na formação.

Sente-se acarinhado aqui no Belenenses?

Sinto. Mas reparem, o treinador dos juniores não é um treinador com muita exposição. O simples facto de ser treinador significa que se está sempre sujeito a críticas e afins às quais fui habituado a conviver com elas a viver durante muitos anos. Sinto-me acarinhado pelas pessoas que trabalham comigo, os membros superiores dos anos anteriores e deste manifestaram total confiança e concordância com aquilo que tentamos implementar e sinto-me muito, muito bem. Acho que tenho muito a fazer na formação.

Entrevista realizada no dia 3 de Março 2009 no Estádio do Restelo.
Texto: Hugo Malcato e Nuno Franco.
Imagens: Academia de Talentos.

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