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Histórias de Belém IV - Um Belenense "dirigente" da Associação de Futebol de Setúbal



Hoje em dia, jogar fora ou em casa continua a ser um “factor psicológico” que influencia, se é que tal acontece, de uma maneira ou de outra, muitas vezes da mesma maneira, os resultados dos jogos. Para o adepto, contudo, a sua equipa jogar fora já não tem o carácter de inacessibilidade que tinha há duas ou três décadas atrás. Com a cobertura (nem sempre completamente profissional, entenda-se isenta) que a comunicação social dá hoje à grande maioria dos jogos de futebol dos escalões principais, qualquer um de nós pode saber o que se passou no jogo do seu clube em qualquer lado, até mesmo assistir à respectiva transmissão directa pela televisão, no conforto de um sofá, sem se ter submetido a grandes incómodos e, sobretudo, sem ter precisado de fazer grandes alterações na rotina da sua vida normal. Mas nem sempre foi assim.

É claro que acompanhar em directo um desafio, apoiar a equipa, continua a exigir que os adeptos se desloquem a “casa” do adversário e disso, melhor do que ninguém, têm experiência as muitas claques organizadas de quase todos os clubes, que actualmente percorrem o país, deixando atrás de si uma imagem que, nem sempre, infelizmente, é a mais simpática. Além disso, continua a haver, como sempre houve, quem decida ir ver o jogo do seu clube fora, quer sozinho, quer aproveitando a oportunidade para reunir uns amigos e desfrutar de um passeio e uma boa almoçarada.

No época em que se passaram as histórias que aqui comecei a contar (abusando um pouco da vossa paciência, pelo que vos quero pedir desculpa), não havia claques organizadas, pelo que era sobretudo a modalidade do “deixa-me ir hoje ver o Belém a tal sítio” que era posta em prática pelos adeptos do nosso clube, como pelos dos outros, aliás. Esta modalidade, que hoje em dia se continua a praticar, agora com muito mais meios (facilidades e rapidez de transporte, poder económico) estava na altura limitada às deslocações na área geográfica da residência, exactamente pela escassez desses mesmos meios.

Aliás, na minha infância, nem sequer se punha a questão de ir ver o Belém fora da Salésias, ou do Restelo, depois. Tenho conhecimento de adeptos do Belenenses que se deslocavam aos outros estádios da cidade de Lisboa quando o nosso clube lá jogava, alguns mais endinheirados aventuravam-se até fora de Lisboa, mas não era o meu caso. Como vos relatei numa das histórias anteriores, o meu universo estava muito limitado a Belém. As primeiras vezes que vi o Belenenses fora de casa terão sido em Alcântara, contra o Atlético, já na minha adolescência, com entradas à borla que o meu pai, que trabalhou muitos anos em Alcântara e lá tinha muitos amigos, me arranjava.



Todos os que me estão a ler terão certamente passado por experiências deste tipo e, provavelmente, guardarão na memória algumas histórias pitorescas que terão ocorrido nessas visitas ao exterior. Na minha família também as houve. Estou a lembrar-me de uma que o meu padrinho me contou, passada há muitos anos. Um belo domingo foi a Setúbal com um amigo, que tinha comprado um carro novo, e o convidou para irem estrear a máquina aproveitando o passeio para verem o Vitória-Belenenses. Foi um dia de glória, menos para o dono do carro. Saíram de Belém cedo, deram um belo passeio (não havia auto-estrada…), almoçaram uma sardinhada em Setúbal, viram o Belenenses ganhar 2-0 ao Vitória, saíram com a bandeira do Belenenses desfraldada ao vento numa janela do carro e, numa curva perto de Azeitão, um grupo de adeptos sadinos menos bem dispostos meteu-lhes o tejadilho do carro dentro, com um pedregulho que mandaram do cimo de um monte que havia atrás da curva… Também eu guardo algumas recordações das minhas deslocações para ver o Belenenses jogar fora, como a que vos contar hoje, curiosamente relacionada também com a região de Setúbal.



Pelos meus 17-18 anos, no início da Universidade, tinha (e tenho ainda) um amigo, o João Fernando, que não gostava nada de futebol, não percebia nada de clubes e nem se interessava pelo assunto (e continua a não se interessar). Esse meu amigo vivia na altura no Barreiro, em casa do pai que, ao contrário do filho, era um fervoroso adepto de futebol. Nessa época, o Barreiro tinha dois clubes na primeira divisão, O Barreirense e o Grupo Desportivo da CUF. O pai do meu amigo trabalhava na CUF, era sócio e dirigente do GD da CUF (e detestava o Barreirense, ah, as rivalidades locais!...) e, por incumbência do seu clube, membro da direcção da Associação de Futebol de Setúbal. Um belo dia, o João Fernando chegou ao pé de mim e perguntou-me se eu estava interessado em que o pai me arranjasse um cartão de “dirigente” da Associação de Futebol de Setúbal, para eu poder ver o Belenenses quando jogasse em campos de clubes dessa área. Podem imaginar qual foi a minha resposta! Uns dias mais tarde estava eu na posse de um cartãozinho branco que dizia: “Associação de Futebol de Setúbal – Corpos Gerentes – Direcção – Ano de 19… e troca o passo”. Mais nada! Nem nome, nem outros dados, e muito menos fotografia. Com esse cartão eu tinha acesso, com direito a lugar “vip”, a qualquer campo propriedade de um clube associado na Associação de Futebol de Setúbal.



Num belo domingo (na altura era sempre ao domingo, que saudades…) apanhei o barco para o Barreiro no Terreiro do Paço, depois um autocarro para o Lavradio e dirigi-me ao Estádio Alfredo da Silva para assistir ao CUF-Belenenses. Podem imaginar a cara do porteiro a quem um puto de 18 anos apresentou um cartão de “dirigente” da Associação de Futebol de Setúbal. O homem olhou para mim de alto a baixo, com ar desconfiado, mas perante a “magnificência” do cartão não pôde fazer outra coisa senão deixar-me entrar e indicar-me uma porta, que dava acesso a uma parte da bancada central, e por cima da qual se podia ler: “Acesso reservado a funcionários superiores da CUF e a membros da Federação Portuguesa de Futebol e da Associação de Futebol de Setúbal”. Sentei-me muito comportadamente, mas, a partir do momento em que começou o jogo, esqueci a minha condição de “dirigente” da Associação de Futebol de Setúbal e não será necessário descrever a figura que fiz, ainda por cima num jogo que o Belenenses ganhou por 2-1. Ainda hoje, os senhores engravatados que estavam nessa bancada e olharam para mim de olhos esbugalhados estarão para descobrir como é que aquele puto maluco do Belenenses ali entrou. Poderá ter-lhes passado muita coisa pela cabeça, que entrei “à cão”, que arranjei uma borla de um conhecido, mas não que estavam na companhia de um “dirigente” da Associação de Futebol de Setúbal!



Mas acho que não me portei mal. Comportei-me tão bem como se comporta hoje (ou deve comportar-se) um furioso azul, um fanático 1919 ou um dirigente de uma Associação de Futebol qualquer…

Saudações azuis.



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