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Histórias de Belém VI - Antes Pastel que Simpático




Nenhuma das opções que fazemos na vida, mesmo as (poucas) que são inocentes, passa incólume ao julgamento dos outros. O ser humano não resiste à tentação de se armar em juiz em causa alheia (e própria, muitas vezes) e acabamos sempre por pagar um preço, maior ou menor consoante as circunstâncias, por todas as decisões que tomamos e opções que fazemos. Nada escapa a esta análise impiedosa, nem mesmo a nossa filiação clubística.

O facto de se ser adepto de um determinado clube é, contudo, um fenómeno muito mais complexo no que respeita ao julgamento alheio uma vez que, para além de sermos criticados por aquilo que somos, somos também criticados pelo que não somos. Isto tudo porque, na grande maioria dos casos, o facto de se “simpatizar” com um determinado clube implica quase automaticamente “embirrar” com outro ou outros clubes.

Todos nós conhecemos um sem número de casos em que um adepto de um clube tem um ou mais “ódios de estimação” por outro(s) clube(s). Nós, belenenses, também não escapamos à regra. Eu próprio sou disso exemplo e toda a minha família: detestamos o benfica e o sporting (as minúsculas são intencionais, fazem parte da embirração). Lembro-me, há muitos anos, de ter assistido a uma transmissão televisiva de um jogo Bayern de Munique – benfica, para uma taça europeia qualquer, que o Bayern ganhou por 6-1. Ao intervalo, quando os lampiões já perdiam por 4-0, o meu pai disse-me:
─ Oh Abel José, vai lá abaixo à arrecadação, traz uma garrafa de champagne e põe no congelador para comemorarmos no fim do jogo!
Poucas vezes um champagne me soube tão bem...



Reacções deste tipo é o que mais houve, há e continuará a haver. E são perfeitamente óbvias por parte de um adepto benfiquista em relação ao sporting ou ao Porto, de um portista ou lagarto em relação ao benfica, etc., etc., etc. Contudo, este género de “embirrações”, por parte de adeptos de outros clubes em relação ao Belenenses, são menos frequentes. Pelo contrário, todos nós já ouvimos não sabemos quantas vezes alguém dizer que o Belenenses é um clube muito simpático, que é do “não sei quantos” mas que o Belém é o seu segundo clube e o diabo a sete. Esta enjoativa gentileza para com o Belenenses, por parte de quem não é do Belenenses como nós, em vez de me agradar entristece-me e, pior ainda, revolta-me profundamente. Lembro-me de uma vez, ainda em miúdo, quase ter apanhado uma tareia dos meus pais, por ter sido “algo incorrecto” com um vizinho nosso que um dia caiu na asneira de me dizer que era sócio do benfica e do Belenenses ao mesmo tempo...

Mas há excepções, mais raras (infelizmente, pelas razões que adiante tentarei apresentar), que embora me sejam a priori desagradáveis e, por vezes, mesmo penosas, acabam por constituir para mim uma pequena “vitória moral”, um atestado (ainda que involuntário por parte de quem o passa) da grandeza do Belenenses. É o caso do meu dentista, lagarto convicto, que um dia me disse, quando me estava a brocar um dente, que o Belenenses era o clube que mais detestava.



Quando me tirou a tralha da boca e tive oportunidade de articular algumas palavras, respondi-lhe:
─ É natural, o senhor é do sporting, não me admira que não goste do Belenenses, porque eu sou do Belenenses e, naturalmente, o sporting é também um dos clubes que mais detesto.
Uma outra dura provação por que passei (passámos todos), foi quando descemos de divisão pela primeira vez. Uma manhã, no autocarro, ouvi alguém dizer em conversa com o passageiro do lado:
─ Até que enfim que o Belenenses desceu à segundona. Há anos que sonhava com isto!
Não será preciso dizer quanto me doeu ouvir aquilo. No entanto, refeito do choque, quando a minha raiva deixou lugar a alguma capacidade de reflexão, compreendi que aquele ódio todo era devido à grandeza do Belenenses, a algum dano (no plano desportivo, entenda-se) que o nosso clube tinha causado ao dele. Afinal, a alegria que ele sentiu naquele momento, será muito provavelmente igual à que eu sentirei se um dia (oxalá) o benfica, o sporting, o boam... e alguns outros descerem à segunda divisão. Estarei a sonhar? O outro também disse que sonhou...

Porque, no fim de contas, esta simpatia pelo Belenenses não é mais do que uma forma (geralmente mal disfarçada, ainda por cima) de exprimir piedade, comiseração e até algum desprezo pelos “coitadinhos” que não fazem mal a ninguém e até ajudam os “grandes” a brilhar. E o pior de tudo é que este sentimento se tem agravado (somos cada vez mais “simpáticos”), muito em virtude de sucessivas gestões “cinzentas” do CFB, que têm atirado o Clube para a situação sombria em que se encontra e que em nada têm contribuído, bem pelo contrário, para o engrandecer e enaltecer a sua imagem. Quando alguém me diz que acha o Belenenses um clube simpático, sinto-me tão humilhado com essa “gentileza” como quando alguém, que acaba de saber que eu sou de Lisboa, me pergunta:
─ É do benfica ou do sporting?
Apetece-me responder:
─ Sou do raio que o parta, ou outra coisa pior ainda...
Mas não respondo. Com a máscara mais civilizada que consigo compor, tento explicar que o mundo (ou Lisboa, sequer) não se esgota nessas duas possibilidades...

À pequenez desta cortesia lisonjeira e humilhante, prefiro a oposição frontal do meu dentista (com quem continuo a manter excelentes relações a nível pessoal) ou a espontaneidade dolorosa do tipo do autocarro (que nunca mais vi, nem sei quem é). Respeitam mais o Belenenses que os bajuladores por conveniência e os coniventes por cobardia. Estes, gostam tanto do Belenenses, como eu gosto de um clube da III Divisão do Bangladesh. Nestas coisas, estou como um grande belenense que todos nós conhecemos, o nosso consócio e amigo Salema Garção. Quando alguém lhe diz que gosta muito do Belenenses, que é o seu segundo clube, que mais isto e mais aquilo, e que o Belenenses é um clube muito simpático, ele responde:
─ Quem? Simpático, eu? Antes quero que me chamem pastel!




Saudações azuis.



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