Voltar à Página Inicial

Dia da Saudade Belenense



Cumprem-se hoje 62 anos sobre o falecimento de Artur José Pereira: é o “Dia da Saudade Belenenses”. Tentarei aqui recordar a vida de um homem que com toda a paixão e preserverança alimentou e realizou um sonho que se fez grande Clube, o nosso Clube de Futebol “Os Belenenses”. Já há algum tempo atrás elaborei aquilo que pretendia ser uma biografia de Artur José Pereira, da qual naturalmente me irei socorrer para o texto de hoje. No entanto esta será uma versão “reduzida” (assim espero eu), para além de mais actualizada (como uma outra versão fornecida para outro espaço azul). No final deixo o "link" para a consulta do texto original na minha página pessoal.

Artur José Pereira nasceu em Belém (como não poderia deixar de ser) em Novembro de 1889 (e não em 1890, como apontam algumas fontes), no seio de uma família pobre e humilde. O local exacto foi a casa da família na Rua do Embaixador (número 69 – 1º andar). Desde logo há a registar uma curiosidade: havia passado somente um ano sobre o célebre encontro promovido pelos irmãos Pinto Basto na Parada de Cascais que consubstanciou a introdução do futebol no nosso país.

Actual estado da casa dos Pereira na Rua do Embaixador: em ruína...


E foi precisamente em Belém que o novo desporto cedo encontrou alguns dos locais predilectos para a sua prática. Ainda no Século XIX eram já frequentes os jogos no areal (em frente ao Mosteiro dos Jerónimos) ou nas Terras do Desembargador (próximo das Salésias). Também já na vizinha Casa Pia, pioneira absoluta na formação desportiva escolar, o futebol era momento de alegria para os seus alunos.

Com toda esta envolvente não terá sido de estranhar que toda a miudagem de Belém fosse rapidamente cativada e se tornasse entusiástica do belo jogo. Entre eles, naturalmente, estaria Artur José Pereira. Jogavam com bolas de trapos, de bexiga de porco ou de boi e não perdiam os jogos em Belém ou Carcavelos (onde jogava a melhor equipa de então, dos ingleses do “Carcavellos”) como relataria anos mais tarde Manuel Martins (o “Barbinhas”, por ser sua a barbearia da zona), grande amigo de Artur, em entrevista com Romeu Correia.

No entanto e se os primeiros jogos - entre ingleses e lisboetas mais abastados - ajudaram a divulgar o encanto do futebol e as suas regras, foi em Belém que o desporto pela primeira vez se tornou verdadeiramente popular, firmando fortes raízes na solidária e apaixonada vida bairrista. Foi ali que as camisolas pela primeira vez deixaram de ser meros equipamentos diferenciadores de “grupos” e passaram a representar a alegria e o orgulho de toda uma gente, bem portuguesa e arreigadamente ciosa da preciosa e histórica herança de Belém, da coragem e audácia dos navegadores que dali partiram. Germinou ali assim a paixão que Artur José Pereira mais do que ninguém viria a personificar, contra todas vontades e desígnios adversos, poucas vezes alheios à humilde condição do povo de Belém (embora erradamente e até aos nossos dias se veicule entendimento contrário).

Em 1904 tornava-se finalmente realidade o primeiro grande clube de Belém, o Sport Lisboa. Por esta altura Artur José Pereira tinha ainda 14 anos, pelo que se pode supôr com bastante certeza que era já um jovem jogador de futebol. Como o Sport Lisboa jogava na maior parte das vezes nas Terras do Desembargador /Salésias, a poucas dezenas de metros da casa de Artur, este deveria ser também um espectador atento (senão já participante) dos jogos da recém-formada equipa.

Durante os anos seguintes o Sport Lisboa afirmou-se como um dos grandes clubes nacionais, mantendo sempre uma forte ligação a Belém, sendo que a maioria dos seus jogadores eram de lá oriundos. Em 1907, porém, as sucessivas dificuldades em conseguir um terreno de jogo próprio culminaram em convulsões e transformações drásticas no Sport Lisboa. Obrigados a afastarem-se do bairro de origem e a deambularem por diversos outros locais de Lisboa, os de Belém pela primeira vez enfrentaram o desânimo. Chegou a ser decretado o fim do Sport Lisboa (facto reconhecido por todos os seus elementos), enquanto muitos dos jogadores aceitaram jogar pelo rival Sporting. Seria Cosme Damião, ex-aluno da Casa Pia, o principal responsável pela solução posteriormente encontrada, não isenta de mais e duvidosas tensões sobre a ligação a Belém. Numa primeira instância resolveu inscrever segundas equipas do Sport Lisboa. Depois, querendo tirar proveito da posse de um terreno próprio, Cosme Damião selou um acordo com um grupo de Benfica que viria a resultar numa suposta fusão do Sport Lisboa e alteração da sua denominação para Sport Lisboa e Benfica. Contestaram os belenenses que haviam saído para o Sporting, argumentando que não assistia a Damião o direito de fazer tal coisa. Apesar de tudo este último conseguiu ainda o apoio e participação necessários da maioria das gentes (e jogadores) de Belém. Mas desde logo mesmo estes ficaram em alerta: o novo clube não poderia menosprezar ou diminuir a relação com Belém, temendo-se até que com um ascendente dos de Benfica se tornasse assim um clube “de Benfica” e não de Belém. Um clube que já não seria o seu. E foi precisamente Artur José Pereira uma das vozes mais cépticas, demonstrando pela primeira vez e de forma explícita que não iria tolerar a usurpação do futebol de excelência e carinho popular exclusivos de Belém.

Artur José Pereira na primeira equipa do SLB (I) - 1908


Em 22 de Março de 1908 Artur José Pereira havia feito a sua estreia pela equipa ainda com a denominação de Sport Lisboa, com apenas 17 anos. Antes disso ficaram conhecidos alguns dos seus primeiros passos noutros grupos de Belém (como o Sport União Belenense, uma das goradas tentativas para suprir a “ausência física” do Sport Lisboa). Em 1 de Setembro de 1908 e apesar de todas as reservas, Artur José Pereira era titular indiscutível no primeiro jogo do Sport Lisboa e Benfica. Poucos dias depois (15 de Setembro) foi já considerado o melhor jogador no histórico encontro em que pela primeira vez uma equipa de portugueses conseguiu um empate no campo dos ingleses do Carcavellos, até então sempre vitorioso no seu reduto e tendo acumulando goleadas expressivas. Basta dizer que na época anterior o resultado tinha sido 7-0!

Artur José Pereira na primeira equipa do SLB (II) - 1908


Rapidamente Artur José Pereira se tornou no melhor jogador português de então, facto amplamente e indiscutivelmente aceite (mesmo pelos historiadores “encarnados”). A sua forma de jogar e de estar, sem ainda o imaginar então, seriam os pilares fundamentais do Clube que viria a fundar. O corpo e alma do Belenenses nasciam já ali. Virtuosíssimo (o melhor), apegado ao seu bairro e aos seus compadres, mas também indómito, emotivo e inconformado. Mais ainda, sobre si recaíram desde logo inúmeras perseguições (e invejas), tantas vezes orquestradas a partir de jornais da época. Vejamos alguns dos episódios que revelam todas estas facetas:
Em Março de 1910, num jogo do Sport Lisboa e Benfica, Artur José Pereira (acompanhado de Candido Rosa Rodrigues, também de Belém) resolveu abandonar o terreno de jogo, inconformado e revoltado com decisões do árbitro.

Artur José Pereira, valor indiscutível do Benfica- 1910


De notar que nessa época (1909/10) o Benfica conquistou o seu primeiro Campeonato de Lisboa (na altura ainda era a principal competição nacional), com Artur José Pereira em grande destaque. Um dos jogos foi mesmo histórico, pois foram a equipa que venceu pela primeira vez o Carcavellos no seu reduto (0-1).

Já na época 1910/11 certo jornal denunciou conduta “violenta” de Artur José Pereira em jogo contra o CIF. O SLB dessa vez saíu a terreiro na defesa do jogador, contrapondo mesmo com a denúncia de uma campanha orquestrada contra si, e também - curiosamente – contra o Sport União Belenense…

Em 1911 Artur José Pereira foi escolhido para integrar uma Selecção da Associação de Futebol de Lisboa, que jogou e venceu os franceses do Stade Bordelais por 5 bolas a 1. Esta selecção da A.F.L. por sua vez pode ser considerada a primeira Selecção Nacional (não “oficial”), na medida em que agregava os melhores jogadores nacionais de então (jogavam todos por clubes de Lisboa).

Alinhando pela "Selecção" de Lisboa, frente ao Stade Bordelais


Em Junho de 1912 o Sport Lisboa e Benfica realizou a sua primeira deslocação ao estrangeiro, visitando a Corunha. Aí decorreu mais um episódio revelador do inconformismo de Artur José Pereira, mas dessa vez já entendido pelo próprio clube como acto de indisciplina, talvez iniciando-se aí o deteriorar de uma relação que viria a ser interrompida. No meio de um jogo “violento” (quiçá “disputado”, conforme os padrões) Artur José Pereira foi agredido por um jogador do Corunha. Ignorando as ordens de Cosme Damião para que desculpasse o adversário, Artur reagiu a “quente”, insultando o espanhol. Numa atitude deveras paternalista, Cosme Damião ordenou então que Artur saísse de campo. Este acatou. Consta que como parte do castigo e nessa mesma noite Cosme Damião terá obrigado Artur José Pereira a ficar sozinho no seu quarto, trancando-o à chave. Este seria sem dúvida o primeiro sinal explícito do “divórcio” entre Artur José Pereira e Cosme Damião.

Artur ao serviço da "Selecção" de Lisboa (seria acompanhado pelos belenenses Henrique Costa e Carlos Sobral).


Em 1913 a Selecção da A.F.L. efectuou uma digressão pelo Brasil, sendo que Artur José Pereira - uma vez mais – era um dos escolhidos. Conta-se que a impressão que deixou Artur nos sete jogos disputados no Rio e em São Paulo foi de tal forma que terá recebido inúmeros convites para ficar a jogar no Brasil (que recusou, claro). Era claramente um jogador de nível incomparavelmente superior. O seu cívico comportamento durante a digressão foi também considerado exemplar, sobretudo sabendo que era homem de pouca instrução e apesar de toda a imagem de homem rude e violento que os seus detractores faziam passar. Como melhor exemplo a amizade e o carinho que ali granjeou junto do Dr. Mário Duarte (pai de Mário Duarte, primeiro guarda-redes do nosso Clube), autêntico “gentleman” e “sportsman”, figura de proa dos primórdios do desporto português. Este o primeiro sinal de que a inveja e a sede de protagonismo de outros poderiam bem estar na base das campanhas para denegrir Artur José Pereira (como viriam a denegrir, também injustamente, o Belenenses).

O ainda jovem Artur, cobiçado até pelos brasileiros...


Entretanto e como ocupação profissional consta que Artur José Pereira tinha arranjado emprego na Farmácia Franco (onde se fundou o Sport Lisboa). No entanto e como o próprio patrão (Pedro Franco) era admirador condicional de Artur, parece que a carga de trabalho não era muita. Para vantagem de Artur ambos preferiam frequentar os cafés próximos e jogar animadas partidas de bilhar.

O autêntico estatuto de “estrela” (plenamente merecido) de Artur José Pereira criava no entanto enorme desconforto no seio do Benfica. Apesar de todos os sucessos alcançados com o indispensável contributo de Artur, o clube decidiu castigá-lo no final da época de 1913/14 com uma suspensão de 6 meses, por alegadamente “recusar-se a treinar como qualquer outro jogador”. A medida naturalmente indignou não só Artur mas todos os jogadores de Belém que ainda constituiam a maioria. Foi então que Artur José Pereira protagonizou a primeira grande “transferência” e uma primeira vinculação “quasi-profissional” do futebol português. Foi para o Sporting auferir 36 escudos por mês. Pelo seu valor mas também para fazer “pirraça” aos benfiquistas, Artur ficou também com prioridade no uso da banheira de água quente do Sporting (então o único clube que dispunha de uma) e foi logo nomeado capitão da equipa. Tudo isto sem contrato assinado, pois valiam a sua palavra e a de Francisco Stromp, “timoneiro” do Sporting – desde então seu amigo.

Artut José Pereira pouco antes da saída para o Sporting - 1914


Embora a ruptura de Artur José Pereira com o Benfica não estivesse directa e exclusivamente relacionada com o deteriorar da ligação do clube com Belém, não se pode ignorar essa circunstância, entretanto agravada. Gerou-se certa “rebelião” entre os restantes jogadores de Belém, alguns ameaçando também com a sua saída do Benfica. Foi o caso óbvio de Francisco Pereira, irmão de Artur, que andou algum tempo sem aparecer. Henrique Costa (viria a ser sócio nº 1 do Belenenses) também havia tentado anteriormente uma aproximação ao Sporting. No entanto e apesar da solidariedade para com Artur José Pereira, a primeira “rebelião” belenense não chegou a consumar-se, ficando o episódio da transferência isolado como uma questão pessoal e de rivalidade com o Sporting. Com dificuldade e alguma habilidade Cosme Damião lá “segurou” os jogadores e a simpatia dos de Belém durante mais algum tempo. Francisco Pereira regressou, apesar de já ter tido beneplácito do Sporting para se juntar a eles. Henrique Costa também permaneceu no Benfica, apesar de também ter recebido ofertas e presentes tentadores do Sporting. Recusou. Mesmo Artur José Pereira só pediu a demissão de sócio do Sport Lisboa e Benfica em Março de 1915.

Já no Sporting, a excelência de Artur José Pereira não tardou em dar frutos. Logo na época seguinte (1914/1915) conquistou o seu primeiro Campeonato de Lisboa. Em 1918/19, novo Campeonato. Pelo meio, a Iª Guerra Mundial, a que as equipas de futebol não ficaram alheias (Francisco Pereira, por exemplo, foi combater para Moçambique). Nestes tempos difíceis Artur José Pereira, apesar de toda a glória e fama, começou a sentir mais forte uma angústia e um desejo. Havia deixado um Sport Lisboa e Benfica que era de Belém mas que cada vez menos o era. Havia deixado companheiros de Belém que cada vez mais sentiam dificuldades e desconforto num clube que se afirmava cada vez mais como “Benfica”, como ele amargamente vaticinara. Nos jogos amigáveis, ao matar saudades nos agradáveis e prazenteiros encontros nos bancos de jardim da Praça Afonso de Albuquerque, Artur sentia e fazia contagiar o entusiasmo de voltar a ter um grande clube de Belém, em Belém. Antes de ver terminar a sua carreira como jogador, Artur José Pereira ergueu aquela causa, queria concretizar um sonho.

Ficava aberto o caminho para a fundação do Clube de Futebol “Os Belenenses”. Desta e dos seus pormenores trataremos daqui a dias, quando celebrarmos o nosso 86º aniversário. Não quero antecipar a “festa”. No entanto e porque hoje se trata da recordação de Artur José Pereira, proseguimos com o que foi a sua vida daí em diante.

Concretizado o seu sonho e na companhia dos seus companheiros de Belém, Artur José Pereira foi o “pai” mais dedicado que se podia querer. Com a sua arte e sapiência das coisas do futebol logo encabeçou uma equipa forte e determinada, à sua imagem. Belenenses ferrenhos, lutadores. E também perseguidos pelos interesses que já se haviam habituado a denegrir os de Belém, agora plenamente estabelecidos e empenhados em denegrir os Belenenses.

Artur José Pereira ao comando de um sonho que o comandou
(pormenor da fotografia da 1ª equipa do Belenenses)


Junto dos seus, em Belém, longe das intrigas e perfídias de outros, as grandezas de alma e talento, a inata genialidade de Artur José Pereria finalmente revelar-se-iam como nunca. Sempre inconformado e exigente em campo, era de uma generosidade e afabilidade extremas para com os seus próximos. Mais, era um homem de fina sensibilidade, a quem certas situações não deixavam de tocar o coração.

Na primeira Assembleia Geral do Belenenses, a 2 de Outubro de 1919, o fundador Artur José Pereira pouco mais destinou que o estatuto de sócio nº 1 do Clube. Num gesto de grande elegância e elevação Artur José Pereira sugeriu que tal honra ficasse reservada para Henrique Costa… “por ser o mais velho”. Como diria Mário Duarte (o nosso 1º guarda-redes, também seu grande amigo) mais tarde: “Até nisso o Artur era grande!”. Ficou como sócio nº 2 e, obviamente, não quis assumir nenhum cargo ou papel directivo.

Era na casa dos Pereira na Rua do Embaixador (onde ainda moravam Artur e Francisco) que os jogadores do Belenenses se equipavam, sempre com o carinho e solicitude da mãe de Artur José Pereira. Uma vez equipados desciam até à Rua de Belém, que depois atravessavam nesses peculiares trâmites até chegar ao campo…

Como ainda mantinha todas as suas qualidades, foi já como jogador de Belém (“do Belém!”) que Artur foi convocado para 9ª e a 10ª edições dos importantes jogos entre Selecções de Lisboa e Porto, onde uma vez mais brilhou. Foi o primeiro jogador do Belenenses a ser convocado para “selecções”, embora não a Nacional.

A propósito, foi em 17 de Novembro de 1921 que a União Portuguesa de Futebol (antecessora da Federação Portuguesa de Futebol) divulgou a lista de convocados para o que seria o primeiro jogo oficial de uma Selecção Nacional (também ela finalmente oficial). Nessa lista foram obviamente incluídos Artur José Pereira, o seu irmão Francisco Pereira e Alberto Rio, que continuavam a demonstrar pelo Belenenses os méritos reconhecidos já desde a sua estadia no Sport Lisboa e Benfica. Foi então que alguns sectores - por certo afectos aos outros emblemas e outras regiões - levantaram então a polémica, objectando de forma desleal à convocatória de jogadores azuis. Como habitual, a voz desses elementos foi largamente difundida pelos meios de comunicação numa clara tentativa de – uma vez mais – manipular a opinião pública.
Quem não esteve para meias medidas foi o próprio Artur José Pereira, que perante tal vaga decidiu que nenhum dos jogadores do Belenenses responderia afirmativamente à chamada. O Belenenses fez então chegar ao secretário-geral da Associação de Futebol de Lisboa um carta (datada de 21 de Novembro) assinada pelos convocados e que incluía os seguintes termos (impregnados de ironia):
“Os signatários [...] vêm junto de V. Exª, muito respeitosamente, mas com o máximo empenho de que o seu pedido seja atendido, pedir escusa da referida nomeação. [...] Convencidos de que com a sua substituição o grupo nacional ficará seguramente melhor, e que com a sua abdicação, assim, de alguma maneira contribuirão para uma melhor representação do País no estrangeiro; de que a opinião pública ao tomar conhecimento desta resolução ficará mais tranquila, deixando portanto de ter apreensões a respeito do possível resultado do encontro Portugal-Espanha, [...] pedem a V. Exª para serem substituídos do grupo nacional, não desejando figurar sequer como reservas”.

Sempre uma referência, mesmo e sobretudo com a sua camisola, a do seu bairro, a do seu Clube!


Infelizmente seria aquela a última oportunidade (logo a primeira) de ver o melhor jogador português representar a sua Selecção.
Em 26 de Março de 1922 deu-se o último jogo oficial de Artur José Pereira. Não parece que a decisão fosse premeditada, mas talvez consequência do jogo em si. É certo que o Belenenses no início dessa época já havia sofrido duro revés ao ser “despromovido” para uma “2ª divisão” do Campeonato de Lisboa, criada no momento e ao gosto de outros para prejudicar sobretudo Belenenses e Casa Pia (os clubes mais “recentes” , a quem se aplicava a despromoção). Vencida a tal 2ª divisão, o Belenenses encontraria no final e naquela data o vencedor da “1ª divisão”, o Sporting. Apesar de todas as cortesias entre alguns velhos amigos (como Artur e Stromp) foi uma partida bastante violenta, sucedendo-se as faltas de ambos os lados. O Sporting venceu por 2-0 mas as decisões arbitrais em prejuízo do Belenenses foram consideradas como “bárbaras” pela imprensa da época.
Na sequência desse jogo a Associação de Futebol de Lisboa resolveu a 30 de Março suportar e acentuar as injustiças do juíz da partida, determinado a aplicação de diversos castigos, incluindo a suspensão de Artur José Pereira por 6 meses, por alegado “jogo violentíssimo”.
Tudo isto provocou simultaneamente revolta e desânimo entre os Belenenses, embora uma vez mais se erguessem para continuar, apesar de todas as (já velhas) tentativas para “afundar” o seu Clube. Quanto a Artur José Pereira, estamos em crer que finalmente deve ter pensado que já tinha a sua conta como jogador de futebol, como jogador daquele futebol.

Apesar de em 18 de Maio de 1922 a AFL ter decidido aplicar uma amnistia a todos os clubes e jogadores castigados, a “despedida” de Artur José Pereira consumava-se: em Abril jogou dois jogos amigáveis em visita a Aveiro (como detalharemos adiante); em Junho desse ano não fazia parte do 11 titular que disputou a Taça do Jornal “O Século”; em Setembro jogou os dois encontros amigáveis que se disputaram em mais uma visita ao Porto (já era tradição anual!); mas para o campeonato de 1922/23 já não foi inscrito.

Acabou assim a carreira de um jogador que para muitos foi considerado o melhor de todos.
Assim o destacou de entre todos os outros jogadores Ricardo Ornellas, grande estudioso e consagrado jornalista desportivo (também um dos principais mentores do aparecimento da Selecção Nacional) no seu livro “Números e Nomes do Futebol Português”. Nessa edição, onde se encontra uma fotografia da célebre digressão ao Brasil (em 1913) e ao chegar a vez de nomear Artur José Pereira acrescentou em exclusivo o seguinte epíteto: “o melhor jogador português de todos os tempos”.
Tavares da Silva (também futuro Seleccionador Nacional e jornalista) foi outra grande personalidade que lhe elaborou inequívoco elogio: “Artur José Pereira nunca estudou o jogo pelos livros ou pelo ensino do treinador, conhecia o futebol como ninguém. Foi percursor do jogo moderno, adivinhando por intuição e por instinto tudo o que dizia respeito à táctica e execução”.
Da forma similar também se refere Cândido de Oliveira, já em Abril de 1945 em artigo publicado no jornal “A Bola” (do qual Cândido foi fundador). Este destaca e enumera as qualidades técnicas do jogador (e orientador-capitão): “[...] possuía qualidades em que nenhum outro jogador o igualou, a maior de todas definida pela atitude artística. [...] Era completíssimo, perfeitamente ambidextro e com potente remate com os dois pés; jogava primorosamente de cabeça; era um driblador estupendo e tudo isto valorizado por uma combatividade e uma coragem sem limites”. Mas foi mais longe ainda ao destacar, como Tavares da Silva, as qualidades como “cérebro” e organizador de jogo: “Foi um autêntico revolucionário do jogo, imaginando soluções, criando conceitos e sistemas que mais tarde haveriam de chegar até nós trazidos pelos técnicos e livros estrangeiros”.
Em suma, para além de qualidades técnicas indiviuais excepcionais, Artur José Pereira também foi muito longe (e muito antes de todos os outros) nas concepções tácticas do próprio jogo, algo que iria demonstrar nos anos seguintes como treinador. A título de exemplo, foi pioneiro – décadas antes de outros – na introdução de um novo sistema táctico já muito semelhante ao WM. Isto quando todos os outros, para além de se limitarem ao tradicional sistema em “pirâmide” (que se manteria em muitas equipas até à década de 40), não pensavam sequer que a implementação de um novo sistema poderia ser uma arma fundamental – privilegiando apenas o aperfeiçoamento das qualidade técnicas. E isto, uma vez mais, vindo de quem não lia ou estudava teorias sobre o jogo.

O talento de Artur José Pereira iria continuar, desta vez como treinador de todas as equipas de futebol do Clube, substituindo em determinado momento Henrique Costa para a equipa principal. Nesta circunstância fez do Belenenses uma autêntica “fábrica de jogadores”. Do escalão mais jovem até à primeira equipa, Artur José Pereira acompanhava cuidadosamente a formação dos jogadores azuis, não tardando em levar muitos para a equipa principal, também eles como grandes jogadores. Cada vez que surgia um rapaz com notável talento era comum comentar-se “este tem o dedo do Artur”; “há ali mão do Artur”. De tal forma que no meio do futebol português Artur José Pereira passou a ser reconhecido para sempre como “Mestre Artur”.
Entre os “produtos” com a marca de Artur, destacamos por exemplo Augusto Silva, José Manuel Soares (Pepe), Mariano Amaro ou Feliciano. Mais palavras para quê?
Ainda assim Acácio Rosa diria mais tarde que, mesmo como treinador, Artur José Pereira foi até ao final da sua carreira um executante sem par na própria equipa (mesmo contando com o dobro da idade de alguns deles).

Pontualmente Artur José Pereira continuou a participar em jogos amigáveis, deslocando-se por vezes a diversas partes do país para tal. Ainda em Abril de 1922 Mário Duarte conseguiu a sua participação num jogo entre equipas de Aveiro, em que Artur José Pereira seria “reforço” de uma delas. Como conta Mário Duarte esta circunstância teve grande divulgação, havendo cartazes na cidade que anunciavam o jogo, referindo-se a Artur José Pereira como valendo por “meio team”!

Com Artur José Pereira como treinador das equipas de futebol os azuis ganharam quatro Campeonatos de Lisboa (1925/26, 1928/29, 1929/30 e 1931/32) e três Campeonatos de Portugal (1926/27, 1928/29 e 1932/33). Finalmente, um palmarés a condizer com o Grande Clube que sonhou. Para mais o Clube contava desde 1928 com um campo também à altura: as Salésias.

Nos anos seguintes a figura de Artur, apesar de omnipresente, começava a passar despercebida. Exemplo disso foi o esforço de Romeu Correia, escritor e jornalista, para recuperar a sua memória. Segundo as palavras do próprio: “ Em 1935, praticávamos atletismo no Clube de Futebol “Os Belenenses” quando, em pleno campo das Salésias demos conta de um homem que treinava as equipas de futebol. Alto, trigueiro, pernas fortes levemente arqueadas e que, por esse tempo teria quarenta e poucos anos. Logo nos esclareceram que se chamava Artur José Pereira e que para muitos entendidos no jogo do pé-na-bola era considerado o melhor futebolista português de todos os tempos. Além desse singular galardão, fora o principal fundador do clube de Belém. Tal coisa nos intrigou, pois aquele homem de apito na boca, com ar de cigano, não nos pareceu , à primeira observação, ser classificado desse modo. Mas uma tarde em que nós lançávamos o peso por detrás de uma das balizas, a esfera rolara para dentro do campo do Sr. Artur. Olhando para a bola de ferro, simulou dar-lhe um pontapé. Quase que lhe gritámos, pois um chuto na esfera de 5 quilos arrancar-lhe-ia a biqueira do sapato. Ao observar o nosso susto, sorriu-se e ganhou um ar brincalhão quando agarrou no peso para o arremessar para junto de nós. Agradecemos-lhe, mas ficámos a partir desse momento com um juízo bem diferente daquele homem brusco e de cara de poucos amigos. Agora ele parecia-nos terno, muito sensível, capaz de ouvir e de tentar remediar qualquer infortúnio do próximo. Não nos enganámos neste segundo juízo, mas só o confirmámos quando mais tarde tentámos colher dados para uma pequena biografia sua, pois todos foram unânimes no elogio das suas enormes qualidades de grande futebolista e treinador.”

Passados alguns tempos em que apenas os títulos - e a valia dos jogadores formados - testemunharam a categoria do Mestre Artur, chegaria o triste ano de 1937.
Artur José Pereira adoeceu e a recomendação do médico (precisamente o Dr. Virgílio Paula, seu companheiro, amigo e também fundador do Belenenses) foi que deveria recolher-se o máximo possível no leito doméstico: terminou assim a carreira de Artur José Pereira como treinador. E o seu contacto directo com a vida do Clube foi sendo cada vez menor.

Perante esta situação – a retirada de Artur José Pereira - foi então que Reis Gonçalves, outro dirigente “lendário” desde a fundação do Clube, muito correcta e respeitosamente solicitou a Artur que designasse o seu sucessor (outros talvez não fizessem o mesmo).
Segundo os relatos, Artur José Pereira respondeu: “Falem com o Cândido. É o homem que nos convém nesta altura. E, acima de tudo, é nosso amigo.”. O “Cândido” era Cândido de Oliveira, já nesta altura um reputado jornalista, treinador conceituado e um teórico do futebol sem par. Também ele apaixonado pela Belém da sua juventude, tendo restaurado outra “herança” do futebol da zona com a fundação do Casa Pia (em 1920). E era, de facto, um grande amigo, personificando a velha amizade entre os dois emblemas de Belém. Recorde-se que em certa altura Artur chegou inclusivé a treinar os mais novos da Casa Pia a troco de… nada.
O Engº Reis Gonçalves, cumprindo o desejo de Artur, foi então ao encontro de Cândido de Oliveira (no Café Nicola) - para lhe fazer a proposta. Este como primeira resposta indicou dois ou três outros nomes que pelo seu juízo dariam bons treinadores. Reis Gonçalves insistiu no desejo de Artur José Pereira. Cândido de Oliveira então serenamente respondeu que aceitaria, sim, treinar o Belenenses, mas a remuneração que lhe era prometida deveria ser entregue a Artur José Pereira. Se assim fosse, treinaria até de borla. Um grandioso gesto de amizade e respeito - como poucas vezes se viu.
É de referir que nessa altura (desde 1935) Cândido de Oliveira era também o Seleccionador Nacional (cargo que já tinha ocupado entre 1926 e 1929).
Cândido de Oliveira conduziu então o Belenenses até ao final da época de 1937/38, tendo assegurado o 3º lugar no Campeonato de Lisboa.
Depois disso Cândido de Oliveira teve de honrar outros compromissos, pelo que o Belenenses solicitou então a Augusto Silva, o fiel e grande discípulo do Mestre (de quem tinha também o total aval), para que assumisse então o cargo. De igual forma este impôs uma condição fundamental: só aceitaria as funções se Artur José Pereira passasse a receber uma subvenção mensal e vitalícia por parte do Clube. E de facto, assim foi. Na Assembleia Geral de 18 de Agosto de 1938 foram aprovados os termos da proposta de Augusto Silva, que seria já o treinador na época seguinte.

Infelizmente o estado de saúde de Artur José Pereira agravou-se a cada ano que passava, havendo quem diga que o vício do álcool acelerou a sua degradação. Vivia já retirado numa modesta casa em Linda-a-Velha, subúrbio então ainda campestre (no meio de “terra e flores”, como se dizia).
Segundo consta ainda aproveitou essa circunstância para aperfeiçoar os seus dotes de caçador, sendo este o seu entretenimento principal.

Cartão de Sócio - de Mérito! - da Associação de Futebol de Lisboa - 1940


Em 25 de Dezembro de 1942 os Belenenses resolveram fazer uma grande homenagem ao seu fundador, à qual não sabemos se Artur José Pereira terá assistido, dada a sua condição cada vez mais precária (mas parece que sim). Feliz iniciativa, seria uma última e justa recordação do Clube.
Volvidos pouco mais que 8 meses sobre aquela homenagem, mais concretamente na alvorada de 6 de Setembro de 1943, faleceu por fim Artur José Pereira.
Morreu na companhia da sua esposa e da sua sobrinha, na sua casa em Linda-a-Velha.
A doença fatal foi a tuberculose, que na altura ainda ceifava milhares de vidas em Portugal pela inexistência de tratamentos adequados.
Dois dias depois (8 de Setembro) deu-se o enterro no Cemitério da Ajuda.

Cruel desencontro, o “seu” Belenenses haveria de vencer cerca de dois anos e meio após a sua morte a maior competição do País. Nessa equipa haveriam de brilhar alguns dos seus pupilos, entre os quais se destacavam Mariano Amaro ou Feliciano (a quem obrigava a jogar só com a bota direita para se habituar a chutar com esse pé!).
Outra amarga ironia do destino, Artur José Pereira teria completado em 1944 os 25 anos de sócio (os mesmos que o seu clube). Praticamente todos os seus companheiros de fundação receberam a distinção, mas Artur já não... faltou o sócio nº2...

Em memória do seu justo “pai” o Clube instituiu por unanimidade da Assembleia Geral realizada em 7 de Março de 1945 que 6 de Setembro passaria a ser o “Dia da Saudade Belenenses”. Nesse dia (hoje, precisamente) ou no Domingo mais próximo ficou estabelecido que deveria ser feita uma romagem ao túmulo de Artur José Pereira. Posteriormente essa romagem passou a coincidir com os festejos de aniversário. E no decurso do ano de 2000, após o falecimento do grande Matateu, decidiu o Belenenses a construção de um Mausoléu no Cemitério da Ajuda onde passaram a repousar os restos mortais dos grandes símbolos do Clube: Pepe, Matateu e claro, Artur José Pereira. A este ilustre trio se presta então homenagem a 23 de Setembro, data da fundação do Clube.
A Artur José Pereira foi atribuída a distinção de “Sócio de Mérito” na Assembleia Geral de 8 de Agosto de 1927. Foi o “Sócio de Mérito” nº 2, logo a seguir ao seu amigo Henrique Costa, que por imposição de Artur José Pereira era o sócio nº1.
Na Assembleia Geral de 18 de Agosto de 1940 Artur José Pereira foi distinguido como “Sócio Honorário”(com o nº 17).
No decurso das últimas celebrações do Aniversário do Clube (o 85º, em 2004) foi finalmente anunciada a concretização de um velho anseio. Assim o tinha formulado Acácio Rosa em 1991, dirigindo-se aos responsáveis de então: “Artur José Pereira é a figura que encarna a mística do Clube de várias décadas. Os Beléns - a juventude de hoje -, a família dos “velhos” e dos novos que se orgulham de pertencer, de lutar e de sofrer pelo BELENENSES, têm a obrigação moral de prestar culto de amor e gratidão a este HOMEM. Que à entrada do nosso Estádio, se coloque a figura, o busto, que diga aos beléns de hoje e do amanhã: foi este o belenense que deu a todos nós, o ideal que apaixonadamente vive em todos os nossos corações.”
Em conversa com o actual Presidente e meu caro amigo Cabral Ferreira fiquei a saber que, para além da alguma “afinação” do projecto, a sua idéia é que a conclusão e inauguração de um memorial a Artur José Pereira sejam incluídas nas festividades das Bodas de Ouro do nosso Estádio (23 de Setembro de 2006). Acho perfeito...

Acrescentaria eu que melhor tributo ainda seria… devolver ao clube aquele que foi o estatuto sonhado por Artur José Pereira. De sermos grandes - os maiores - entre os grandes do nosso futebol. De termos a coragem e audácia de não nos curvarmos perante nada nem ninguém, senão apenas em respeito e memória de homens como Artur José Pereira.

Como resumiu de forma sublime Mário Duarte: “Que maior e melhor fundador poderia ter o nosso clube?”




Enviar link por e-mail

Imprimir artigo

Voltar à Página Inicial


Weblog Commenting and 
Trackback by HaloScan.com eXTReMe Tracker