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Escribas de têmpera



A minha experiência de escrita para publicação começou cedo no jornal da Escola Secundária Pedro de Santarém no “Tronco em flor” em 1970, um folheto impresso a stencil incentivado por um professor com iniciativa para as coisas da imprensa. O impresso era vendido para suportar os custos de impressão e lá foi ganhando adeptos.

Em matéria de escrita o meu percurso passou pela participação em inúmeras colaborações, algumas na juventude sob a alçada do antigo regime, em publicações regionais, técnicas e sociais de diversa índole, chegando a direção e quantas vezes na direção interina. Actualmente sobram-me publicações técnicas esporádicas em revistas de especialidade. Todo o percurso independentemente do cartão legal inerente (hoje pomposamente carteira profissional) sem auferir um tostão e quando há disponibilidade que seja em função da publicação. Prescindo de honorários por princípio porque não é a minha profissão. Julgo conhecer os meandros da arte e distinguir o trigo do joio.

Vem esta confissão pessoal a propósito de Rui Cartaxana recentemente falecido cuja notícia aqui divulguei. Rui Cartaxana como Homero Serpa e poucos outros marcaram uma geração de grandes jornalistas insubmissos procurando uma linha condutora entre o jornalismo notícia com as suas regras e a informação desportiva carregada de emotividade ao sabor das massas.

Jornalistas com J grande independentemente das suas opções clubísticas que deixam saudade.

Um jornal de clube ou um blog dedicado não terá obrigações de isenção e pode ter uma visão unilateral porque essa perspectiva é intrinseca, mas não o será no que se refere à objectividade.

O jornalismo desportivo terá as suas pechas onde o acompanhamento dos clubes em igualdade competitiva são tratados de forma desigual, criando diferenciações que influenciam as prestações. Essas diferenciações começam logo nas redações quando mandam os estagiários ou menos dotados para determinados trabalhos, quando não enfermam por uma submissão aos donos dos jornais.

Neste capítulo basta verificar a qualidade dos escribas colocados de atalaia que contra os mais elementares deveres não conhecem a história do clube que acompanham, não conhecem os seus estatutos, mas chamados a uma qualquer sessão sobre os temas escrevem sem saber exactamente o quê. Claro que depois sai asneira mas isso é outra história.

Um dos jornalistas e há poucos que faz os seus trabalhos de base e de cuja opinião fundamentada sou fã é João Querido Manha.

Tinha preparado uma citação do seu texto publicado no record na Terça-Feira, 28 Julho de 2009 sob o título On the record, mas decidi transcrevê-lo na íntegra por uma questão de contexto.

Não é fácil lutar contra o “sistema” e denunciar o que está errado sem levar rótulos de anti-social ou “más-língua”, o CAS que o diga.

Deu ao prelo Querido Manha:

O chamado "off record" foi um dos momentos mais controversos, mas também mais altos, da história deste jornal, chegando a semear o pânico entre alguns abencerragens da deontologia, concubinados com o Sistema em torno dos direitos televisivos, abichando os subsídios do erário público e largas fatias do mercado publicitário das empresas do Estado.

Foi um abanão e peras - como diria o Rui Cartaxana, que sempre usava esta qualidade de "fruta" para superlativar. Mas não chegou para endireitar um mundo subterrâneo que há muito vinha tecendo a imunidade à margem do direito e do respeito e uma teia de dependências e compadrios que vão da criminalidade das claques à colocação de treinadores, bem mais complexas e decisivas do que o fator distrativo e expiatório da Arbitragem.

Perante o paradigma de televisões e intermediários ricos e clubes falidos, o desaparecimento de Rui Cartaxana simboliza o fim de um período romântico, mas muito intenso, em que os jornalistas lutavam com aprendizes de feiticeiro ainda muito aquém da idade do despudor em que vivem na atualidade. Apesar da dureza de alguns momentos, a luta era transparente, quase leal, pela definição dos campos: as malfeitorias, trapaças e negociatas eram tão óbvias que ninguém verdadeiramente se espantou com as revelações das escutas telefónicas do processo Apito Dourado, uma pequena amostra do quotidiano de delinquência e corrupção que o "Record" enfrentou e denunciou ao longo da década de 90.

Mas agora a promiscuidade das relações entre os controladores do negócio, pomposamente apelidado de "comunicação", e a gestão dos clubes de futebol atinge o zénite, fechando um círculo de exclusivismo marginal que, além de atentar contra a liberdade de expressão na forma mais reles e discriminatória, reduz à quase nula eficácia os pequenos nichos de contestação que ainda sobrevivem.

Quase se podia concluir que toda a luta, toda a abnegação e coragem postas no confronto de um adversário tão perigoso foram em vão e que o longo histórico de dezenas de processos e julgamentos por alegado abuso de liberdade de imprensa não terá passado de mera perda de tempo, uma luta desigual contra um monstro que se regenera.

Pouco trabalho e muita prosápia formatam a ilusão de que o desporto mudou e é agora um exclusivo dos que só têm olhos para o que a geração anterior chamava de "coisas bonitas", devendo expurgar (ou não convidar) todos os que resistem e pensam pela própria cabeça. É o princípio de Peter espelhado na preguiça de quem considera politicamente correto que o sucesso ou a consideração se possam catalogar por simpatia ou comprar e vender.

Rui Cartaxana morreu resistindo ao convite tentador de "juntar-se a eles se não os podia vencer", que seduziu muitos outros ao longo deste percurso. Mas sabendo, on the record, que ainda ficam por aqui alguns da mesma estirpe.

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