Voltar à Página Inicial

O nosso Pepe



José Manuel Soares Louro. Pepe.
Simplesmente Pepe. Para a fama, para a tragédia, para a história. Nado e criado nas
Terras do Desembargador, ainda garoto de rua apresentou-se num dia de 1926 a jogar,
nas Amoreiras, peloBelenenses, contra o Benfica - numa equipa em que militavam astros como Augusto Silva, César de Matos, Almeida... Fora Augusto Silva quem insistira em pôr o miúdo a interior-direito. A 15 minutos do fim o Benfica ganhava por 4-1.
Acabou por perder por 4-5, o golo da vitória dos homens da cruz de Cristo foi apontado, já ao lavar dos cestos, por Pepe, na transformação de um penalty. Ninguém
queria assumir a responsabilidade de o bater, olhavam todos uns para os outros, Pepe, em jeito de puto reguila, disse para Augusto Silva: «Deixem estar que eu chuto!»
Naquele pontapé nasceu uma nova estrela.
Nesse mesmo ano estreou-se pela Selecção Nacional, contra a França, marcando dois
dos quatro golos de Portugal.

Severiano Correia passa duas pinceladas sobre o seu génio: «Era de facto um jogador extraordinário! Irrequieto e franzino, dentro do rectângulo era um elemento que chamava as atenções do público. Chutador por excelência, de uma combatividade
extraordinária, constituía perigo para qualquer defesa, por muito valiosa que fosse. Era o menino mimado das gentes de Belém, de tal modo que nem com uma rosa se lhe poderia bater - expressão do seu mestre Artur José Pereira.»

Em apenas cinco anos contribuiu para o crescimento fulgurante do Belenenses, que viu passar do Campo do Pau do Fio para as Salésias, ajudou à conquista de três campeonatos de Lisboa, em 1926, 1929 e 1930, num jogo contra o Progresso marcou 10 dos 11 golos do seu clube - um record nunca mais batido em competições oficiais... Na época de 1931/32 o Belenenses voltou a sagrar-se campeão da AFL.
A fotografia comemorativa do título mostra todos os heróis de fumo negro. Por Pepe.
Fora assim que jogaram o ano inteiro.

Num dia sujo de Outubro de 1931 a morte ceifou o génio e abriu um mistério que o tempo nunca mais desfez, adensou, transformou em lenda. Em lendas. Pepe estava a caminho dos 23 anos, nascera a 29 de Janeiro de 1908. Comprovado está que morreu ao comer um chouriço.

Versões sobre o envenenamento há várias. Uma que foi a namorada que deixara que se infiltrou à sorrelfa pela casa, deitando na cozedura deletério qualquer. Outra que foi a irmã Ana, casada com o também futebolista Rodolfo Faroleiro, que por inveja o quisera matar - no que, em Belém, ninguém acreditou, por ser Pepe quem mais a ajudava em momentos de aflição e penúria. Outra ainda que fora uma osga que caíra do tecto e na fervura espalhara peçonha.

No entanto, a partir de trabalho publicado por Homero Serpa, em A BOLA magazine, se desvenda a versão mais credível. Muitos anos depois da tragédia um agente da PJ haveria de contar que fora a potassa que a mãe confundira com sal que matara Pepe, que a versão oficial se guardou em silêncio para não destroçar ainda mais quem tão tragicamente perdera o filho destinado a herói.

O veneno segregara-se no chouriço, o pai e a irmã, que apenas comeram o caldo, salvaram-se com simples lavagens de estômago no Hospital de São José.

Pepe, quando agonizava no Hospital da Marinha, já só teve força para lançar meia-dúzia de dramáticas últimas palavras: «Cortem-me as pernas mas salvem-me a vida.» Nada se conseguiu. E foi, então, um país inteiro em pesadume, o mito em voo largo para a eternidade - e todos os anos a imagem, que não deixa de comover, das flores que os jogadores do F. C. Porto depositam no monumento que se transferiu das Salésias para o Restelo, o mausoléu construído para perpetuar o ídolo grande, apesar da vida pequena.

O pai de Pepe mercanciava hortaliça de porta em porta numa carrocinha, a mãe vendia fruta no velho mercado de Belém, destruído em holocausto à Exposição do Mundo Português - a família vivia assim numa pobreza cortante, só atenuada quando o filho começou a ganhar algum (secreto) dinheiro no futebol e o ordenado de operário no Arsenal da Marinha. Para almoço de gente em paupérie, numa altura em que o País continuava mergulhado em crise profunda, sopa havia e pouco mais. Luxo era juntar-lhe um enchido.

Foi o que se fez naquele dia trágico. À mesa comeram-se os legumes apenas na malga, o chouriço foi posto carinhosamente, pela mãe, na lancheira de Pepe para que merendasse no trabalho.Ele faleceria algumas horas depois. Em O Século, Tomé Vieira conta assim os primeiros sinais da tragédia: «Às 10.30 Pepe sai do torno e vai buscar a bucha. Meia hora depois sentiu-se mal. Ainda ironizou - purgante e só agora é que está fazendo efeito.>»

Flamínio Azevedo, no Diário da Manhã, desvenda as horas amargas, a angústia do morbo, a vida a desfazer-se, no entardecer do dia triste - as palavras de Mendes Belo, médico do Hospital da Marinha:
«Impressionou-me com a sua modéstia, vinha de fato de ganga e boina e quando lhe perguntei do que sofria queixou-se de violentas dores de barriga. Daí por duas horas apareceram sintomas de mais gravidade, aquilo foi vertiginoso: algidez, hemorragias, colapsos, reacções deficientes às excitações exteriores, Pepe a queixar-se de que tinha vontade de vomitar e não podia... O pulso desaparecera e duas transfusões de sangue não deram qualquer resultado...»


Texto de «A Bola» -«O Século XX do Desporto»

Algumas lacunas e erros.

1. Pepe morreria apenas ao segundo dia do internamento no hospital.

2. O pai nunca chegou a ser internado. As duas irmãs (Ana e Suzana) estiveram bastante mal, tal como o mãe e os irmãos mais novos.
3. O jogo dos dez golos foi contra o Bom Sucesso, não o Progresso.
4. O apelido «Louro» não consta de qualquer registo.
5. O pai chamava-se Julião Soares Gomes, mas Pepe não herdou o segundo apelido.


Nota: A 2ª foto foi retirada daqui.

Etiquetas:




Enviar link por e-mail

Imprimir artigo

Voltar à Página Inicial


Weblog Commenting and 
Trackback by HaloScan.com eXTReMe Tracker