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Vicente, o homem que não foi vencido




«No mundo dos ídolos desportivos, Vicente Lucas tem um lugar à parte. Um prestígio todo feito de correcção, de enaltecimento das melhores virtudes de lealdade que devem ser apanágio de um atleta.

Para além desse valor moral, pontifica, também, o mérito de ordem técnica. Que não é de somenos. Vicente faz parte do escol dos futebolistas portugueses. Um dos melhores «médios», várias vezes «internacional» - o escolhido para «tapar» o «Rei» Pelé. Foi na lutavantajosa com o célebre «crack» brasileiro que o nome de Vicente soou mais forte além-fronteiras.

E é curioso: Pelé, vencido tantas vezes por Vicente, ficou a ser o seu mais leal admirador. Porque ninguém levou a melhor com o «Rei»
empregando tanta classe. e correcção.

Vicente Lucas é, pois, um exemplo. Um modelo.

Infelizmente, um golpe traiçoeiro do destino comprometeu a carreira do valoroso jogador belenense. Está cego de uma vista e as probabilidades de se curar são as contingentes neste género de lesões. A esperança mora, ainda, em Vicente, e naqueles que tão desveladamente o tratam. Mas a Ciência é, por vezes, impotente para corresponder aos mais ardentes votos e crenças.

O desastre que marcou tão cruelmente o «bom» Vicente emocionou o país inteiro, e não só na esfera desportiva.

Quem subscreve estas linhas era, em 1954, repórter do jornal «Record».

Foi nessa qualidade que, na manhã de 30 de Julho desse ano, nos deslocámos ao cais da Rocha, para entrevistar um jovem futebolista que viajava no Pátria, com destino ao Belenenses, e com a interessante particularidade de ser irmão do popularíssimo Matateu.

Recorda-nos de ver Vicente desembarcar e do trabalho que tivemos para furar a muralha humana que o cercou, de curiosos e belenenses expectantes, pela ideia de um segundo Matateu no seu clube. Resolvemos, então, seguir o carro do Lucas mais velho, que levava o irmão para sua casa, perto da Alameda D. Afonso Henriques.

Recorda-nos, também, que quando Matateu nos franqueou a porta, o mano Vicente estava sentado numa cadeira, tão quieto como um menino bem comportado. O seu rosto exprimia a bondade que ainda hoje se lhe nota como traço essencial do seu carácter. Um leve sorriso permanentemente nos lábios, de serena satisfação, de encanto, talvez. A mulher deMatateu tratava-o com a solicitude de irmã, procurando que ele não se sentisse um estranho em sua casa. E Vicente, exprimindo-se por monossílabos, continuava quieto na cadeira, respondendo ora ao desvelo da cunhada, ora às chalaças do irmão, ora às perguntas do jornalista.

Foi assim que conhecemos o «bom Vicente». Depois, ao longo de mais uns bons pares de anos, muitas vezes o entrevistámos. Sempre a mesma dificuldade em lhe arrancar extensas declarações - e sempre, também, o bondoso sorriso, a clareza do trato a compensar as entrevistas «insuficientes». A clareza e correcção que fizeram dele, dentro dos campos de futebol, um desportista impar.

Doze anos se passaram desde o nosso primeiro encontro com Vicente.

Voltamos agora a entrevistá-lo, na sua casa de Carcavelos, para elaboração da presente edição que lhe é inteiramente dedicada. Devemos confessar que sentimos uma certa emoção ao encarar, de novo, Vicente.

Ele a Mário Coluna, hoje «capitão» do Benfica e da selecção nacional, eram vizinhos, companheiros de escola. e de clube. Não um clube a sério. Mas um clube de garotos que denominaram «Acrobático». Pagaram quotas para a compra de material - camisola, calções e bola. Não botas, porque jogavam descalços. Curioso, a camisola era à Sporting - mas nem Vicente nem Coluna seguiriam, mais tarde, as cores verde e branca. Um preferiu o azul, o outro o encarnado.

Os meses rodaram velozes. Matateu brilhava nas Salésias e noutros campos europeus. Era uma tentação.

Vicente sonhava como «futebol de cá», mas não ousava confiar a ninguém o que sentia. Era tímido de mais para alardear a sua discreta ambição.

Quando subiu à 1ª categoria do 1º de Maio - tinha então 17 anos - Severiano Correia convocou-o para a selecção de Lourenço Marques. Mas não chegou a jogar.

A sua vida dera uma volta como uma bola de futebol que entra na baliza.

Um adepto belenense - barbeiro de profissão e entendido nos «futebois» como todo o barbeiro que se preza - avisou «para cá» o seu clube, de que o irmão de Matateu era muito jeitoso. Foi então que o mano Matateu «se dignou» a escrever para casa, a pedir à mãe para deixar o «Mandjombo» vir para o Belenenses. E, mais uma vez, D. Margarida disse «Não!»

Mas o capitão Soares da Cunha - que mais tarde viria a ser presidente dos azuis - estava em Lourenço Marques, intercedeu junto da mãe dos dois grandes futebolistas. Vinte contos pagou, imediatamente, e a promessa formal de que Vicente seria cuidadosamente tratado e com o futuro assegurado demoveu D. Margarida.

Quando Vicente chegou a Lisboa, os treinos ainda não tinham começado. E foi Serafim das Neves, o «internacional» - no impedimento do mano Matateu - quem, dois dias depois, o levou pela primeira vez às Salésias.

Riera era, então, o treinador do Belenenses. Vicente e Serafim treinara-se ligeiramente. Que emoção, treinar-se naquele estádio histórico, enorme, gigantesco, comparado com os «pelados» da sua terra.

Texto de Vasco Santos para uma edição de homenagem
publicada pela Agência Portuguesa de Revistas
(s/d - c. 1967)

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